Prosseguindo uma série dedicada a relatos de viajantes por terras de Caminha, trazemos hoje a descrição ficcionada de uma passagem pela vila sede do concelho da autoria de D. João de Castro (1871-1955), escritor nascido em Azurara (Vila do Conde), hoje muito esquecido, que pertenceu na sua juventude a um grupo de literatos conhecido pelos nefelibatas — literalmente, que andam com a cabeça nas nuvens — uma versão portuguesa do simbolismo e decadentismo europeus na viragem de oitocentos para o século XX. De família brasonada, João de Vasconcelos Sousa Castro Lima e Melo de Athayde e Almada foi um autor prolixo, com obra numerosa de poesia, romance e dramaturgia, para além de vasta colaboração dispersa pela imprensa da época, nomeadamente no jornal portuense "O Primeiro de Janeiro" (ver http://trovisqueira.com.sapo.pt/.)
 |
A passagem de D. João de Castro por Caminha, breve etapa de um roteiro por diversas localidades minhotas, é situada por ele mesmo no verão de 1893 mas a narrativa da estadia de vinte e quatro horas só viria a ser publicada em 1906 em "Jornadas no Minho — impressões, aventuras e travessuras de dois excursionistas meridionais".
Os protagonistas citados no título são o próprio autor, representado pela personagem
"Vasco de Montarroyo", e o seu amigo, também escritor nefelibata,
Júlio Brandão (1869-1947), encarnado em
"Alexandre Coutinho". O itinerário da excursão, que alterna a diligência com o mais cómodo comboio, inicia-se na Póvoa do Varzim, prossegue por Braga, Arcos de Valdevez, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Viana do Castelo e Valença, antes da chegada a Caminha por caminho de ferro. De prosa solta mas cuidada, as peripécias da viagem dos dois companheiros são descritas em tom humorístico propiciado pela introdução de uma terceira personagem, uma cortesã francesa de nome
"Ninette", que ambos fazem passar por prima de Alexandre Coutinho. O registo ligeiro da obra é porém matizado por descrições de bom trato literário dos locais mais admirados, entre eles Caminha, que aqui transcrevemos na sua quase integralidade, atualizando a ortografia original mas, em contrapartida, sem corrigir uma ou outra inexatidão histórica que nem a presença da figura do erudito
"dr.Serafim" logrou evitar:
 |
"Partimos de Valença na manhã do dia seguinte e parámos vinte e quatro horas em Caminha, a linda guardiã do Minho, que nos tinham recomendado como terra muito para ver. Pequenina, fresca, sorridente, essa vila tem alguma coisa de infantil, que seduz. Apeninsulada pelo mar e por dois rios, lembra vagamente uma canastrinha de verdura onde um novo Moisés sorrisse, embalado pelas águas. Percorremos num instante as suas ruas, sem a desconfiança inconfessada que em Valença emperrara os nossos passos. No meio da povoação, entre as brilhantes caliças das construções modernas, achámos a igreja matriz, relíquia quinhentista, que passa por ser o mais belo exemplar arquitetónico da província. O mais curioso é, certamente. Começado por D.João II e acabado por D.Manuel, pertence a esse nobre, gracioso e híbrido estilo a que na arte portuguesa ficou vinculado o nome do rei venturoso. Grande número de esculturas e ornatos diversos guarnecem profusamente as suas torres, a sua cimalha, suas portas e janelas. Na renda caprichosa da sua platibanda, há quando a quando saliências de goteiros finamente esculpidos; — e para que ninguém duvide do patriotismo de tão raiano povo, como é o de Caminha, os dois embornais que ficam voltados para o lado da Galiza representam duas crianças acocoradas, dando passagem à água da chuva por uma via que a Natureza costuma destinar a menos hidráulico mister. O interior desta igreja é quase tão curioso como o exterior. Duas fieiras de colunas, que no alto dos capitéis se unem entre si por espessos arcos, sustentam o teto de madeira das naves, cavado de artesões e florido de magníficas alhas. Entre as imagens do culto, admirámos também um Cristo, no passo do Ecce-Homo, que dizem ter vindo de Inglaterra por ocasião do movimento anti-católico promovido além-Mancha pelo Barba-Azul da dinastia dos Tudores. É o patrono de todos os mareantes das cercanias. A sua capela, debordante de ex-votos, é um verdadeiro museu de fé popular. Saímos do templo na companhia do dr.Serafim, homem douto e previdente, que, munido de um roteiro manuscrito, dum grosso lápis e dum caderno de apontamentos, andava como nós visitando a alegre vila fronteiriça. Como em frente das maravilhas da igreja havíamos escutado com reverente atenção os seus dizeres eruditos, o digno homem, lisonjeado, ofereceu logo à nossa desorientada curiosidade de excursionistas moços, o auxílio do seu metódico e experiente saber. Aceitámos com júbilo; e, desde então, ao lado desse inesgotável Mentor, fácil e gostosa foi a nossa tarefa. No Terreiro, fez-nos notar a casa gótica dos Pittas, edificada na agonia do século XV por um fidalgo galego; a casa da Câmara, com a sua torre romana; e o chafariz que adorna a praça, cópia fiel de outro, que em Viana, na praça da Rainha, nos apontara o dedo autorizado do conselheiro Bezerra. Depois, enquanto procurava um miradouro capaz de dar nitidamente aos nossos olhos todo o encanto da paisagem arrabaldina, contou-nos que, pelos forais de D.Dinis e D.Manuel, aquela apetitosa Caminha, que nós andávamos admirando, tivera já o insigne privilégio de couto do reino.
- Couto do reino?... — estranhou a Ninette, fazendo-se eco da nossa ignorância. O dr.Serafim ergueu para ela dois tímidos e gulosos olhos de Sábio.
- Sim, minha senhora… Quer dizer que se algum malfeitor aqui se refugiasse, não poderia ser preso ou castigado. — E ajuntou, com benevolência: — Tempos de obscurantismo!
Assim lardeada de comentários, sob o claro céu daquela manhã de verão, a romagem ia infiltrando em nós um franco, saudável gozo de existir. O ar que nos banhava os pulmões como que dissolvia no nosso ser moral o quimérico azul do espaço. Havia nele murmúrios de beijos, frémitos de asas, perfumes de flores, luzilumes de astros. Um trago de vida reverberado de sonhos. Mais tarde, perto do rio, em face da paisagem que rodeia Caminha, mais se aveludou em nós essa estranha, delicada voluptuosidade. Na frente tínhamos a pitoresca ourela galega que de Passaje a Goyan se alastra, verde, fértil, pintalgada de casas, e rematada pela serra de Santa Tecla que o rio Minho, mesclado já com águas oceânicas, corta a prumo na sua foz. O mar, sonolento e azul, enchia à esquerda todo o horizonte, bordando de espumas carinhosas os velhos muros da fortaleza da ínsua; e, no lado oposto, o Coura resfolegava na confluência com uma surda ira de rival impotente, rasgado pelos pilares de uma longa ponte, ao fim da qual se aninhavam, como gaivotas dormentes, as casas brancas de Seixas. Em todo este Minho montanhoso e idílico, raro se encontrará um trecho de natureza com tão penetrante e harmónica beleza. Disso me deu prova o silêncio comovido com que tanto a Ninette, gárrula, como o dr.Serafim, erudito, acompanharam o lento, amoroso olhar com que o Alexandre e eu fixámos esse panorama adorável. Mesmo entre a cética e brutal humanidade de hoje, dificilmente aparecerá alguém que não surpreenda no segredo dessa paisagem uma voz que desperte ou domine emoções.
 |
Parece que há nela raízes entumecidas e criadas em algum barro atávico — ou que é o mesmo fluído vital que faz estremecer a vegetação e a alma dos olhos que a contemplam. Quando chegámos ao hotel, a tarde caía já, afogueada pelas tintas ígneas dos crepúsculos estivais da beira-mar. (…)" (D.João de Castro, Jornadas no Minho…, 1906, Lisboa: Ferreira & Oliveira, pp.272-276).
O tempo da estadia dos dois amigos em Caminha prossegue ainda por algumas páginas sem especial interesse, evocando-se um hipotético poeta local — "Tomás Borges, bardo caminhense" — como mero pretexto para a criação de um jocoso soneto de homenagem a Ninette, após o que a comitiva nefelibata parte para Viana do Castelo, de onde seguiria para Barcelos, derradeira etapa destas inocentes mas curiosas Jornadas no Minho
.