A cerimónia da Quebra dos Escudos por ocasião da morte do rei, de raízes medievais, celebrou-se em Portugal desde o reinado de D. João I (século XIV) até ao falecimento de D. Pedro V, em 1861. A fúnebre solenidade, regulamentada no tempo de D. Manuel I, realizava-se nos principais centros urbanos, como Lisboa e Porto, e nos outros municípios cujas vereações assim o estipulassem por respeito à memória do monarca desaparecido. Com um protocolo exigente decalcado de umas localidades para as outras, com raras diferenças, consistia num cortejo processional civil, liderado pelas autoridades do município, com paragens em sítios determinados para o quebramento ritual de três escudos de madeira decorados com as armas reais.
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Para o concelho de Caminha, temos a sorte de conhecer em pormenor o cerimonial da Quebra dos Escudos realizada no final de 1853 quando da morte de D. Maria II, uma rainha particularmente querida do então presidente da Câmara, José de Oliveira Torres, 2º Barão de S. Roque. Em julho do ano anterior, fora D. Maria da Glória quem concedera o título a seu pai, José Pereira Torres (1774-1860), confirmando-o em novembro ao filho, que presidia ao município caminhense desde janeiro de 1850. Daí o particular empenho colocado por José de Oliveira Torres (1810-1867) numa solenidade que seria também o último ato oficial dos seus dois mandatos como presidente da Câmara.
Conhecida a notícia do falecimento real — aos 34 anos de idade, D. Maria II faleceu em 15 de novembro de 1853 em resultado de complicações sobrevindas no seu undécimo parto —, a Câmara de Caminha decretou seis meses de luto geral, com três meses "pesado" e os seguintes "aliviado" (Ata CMC, 24-11-1853).
Passados alguns dias, reuniu extraordinariamente para deliberar sobre o programa da Quebra dos Escudos que seria realizada logo a seguir ao Natal, no dia 28 de dezembro. Presidida por
José de Oliveira Torres, nessa reunião participaram ainda os vereadores António José Ribeiro Júnior, José Lourenço Cardoso, José António Gavinha e Jacinto José Gonçalves Vaz de Azevedo. Apesar da extensão da ata, manuscrita pelo escrivão municipal, Francisco Coelho da Silva, cremos justificar-se a sua transcrição, tanto pelo exotismo da encenação da Quebra dos Escudos — uma sobrevivência do Antigo Regime em época liberal — como pelos muitos ensinamentos que dá a conhecer sobre a sociedade caminhense em meados do século XIX:
"Programa para a Solene e Lúgubre Cerimónia da Quebra dos Reais Escudos, a que tem de proceder-se na Vila de Caminha, por motivo da infelicíssima morte de Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Maria Segunda, que Deus haja em glória.
Levantar-se-ão três tablados no Terreiro, no Largo de S.João [atual Bento Coelho] e no fim da Rua das Flores [atual Visconde de Sousa Rego] , junto às portas de Viana, tendo cada um no centro seu estrado e em cima dele um pontalete todo coberto com baetas pretas. Cabos de polícia farão conservar em distância destes tablados as pessoas que concorrerem a presenciar a cerimónia, para que o Préstito possa desempenhar o que lhe confere na mesma.
Pelas onze horas do dia 28 do corrente mês de Dezembro a força de Veteranos que estiver destacada nesta Praça por convite da Câmara ao Governador da mesma, achar-se-á por toda junto à Casa da dita Câmara do lado esquerdo, para acompanhar o Préstito: A música da Sociedade Filarmónica desta Vila ao lado direito; e no centro, com a frente para a mesma Casa, o tambor ou tambores que houverem de acompanhar o dito Préstito com as caixas cobertas com baeta preta.
Cumpridas estas disposições, e reunidas por convite da Municipalidade as Autoridades na Casa da mesma, das janelas, até então fechadas, abrir-se-á a do centro e chegando à varanda da Câmara Municipal em rigoroso luto, o Presidente no meio dos Vereadores empunhará o Estandarte da Vila que então será de fazenda preta; e descobertos os Vereadores, esperando que o Povo corresponderá a esta demonstração de respeito, o dito Presidente, tendo o chapéu na cabeça, sendo o único que assim se conservará sempre, exclamará em voz inteligível — Chorai, chorai Portugueses, chorai a muito sentida morte da Vossa Augusta Rainha, a Senhora D. Maria Segunda!
Depois desta exclamação, o tambor ou tambores que se achem por baixo das janelas da Câmara, darão três rufos nas caixas dos tambores, estando neste pequeno intervalo o Presidente e Vereadores algum tempo inclinados em sinal de compunção e sentimento.
Fechada a janela, começará o Préstito a percorrer Caminha pela Rua da Corredoura na ordem seguinte:
Uma guarda de Veteranos aqui estacionados.
O tambor ou tambores que houverem de acompanhar esta lutuosa cerimónia.
Um Oficial de Diligências da Câmara e outro do Judicial.
Outro Oficial de Diligências do Judicial e o da Administração do concelho.
O Meirinho da Alfândega e o Piloto-mor.
Dois Escudeiros.
Mestre de cerimónias.
O Escrivão da Administração e o Tesoureiro Municipal.
O Escrivão dos Juízes de Paz e Eleito e o Chaveiro da Alfândega.
Os Escrivães do Juiz Ordinário.
O Director do Correio e o Recebedor do concelho.
O Regedor da Paróquia e o Juiz Eleito.
O Escrivão da Carga e Descarga e o Guarda-mor Tesoureiro da Alfândega.
Os Professores do ensino primário Repentino e primário público Régio desta Vila.
O Juiz de Paz e o Professor de Latinidade.
O Escrivão da Receita da Alfândega e o Juiz Ordinário.
O Golª [?] mor da saúde e o Doutor Sub-Delegado.
O Capelão-mor da Santa Casa da Misericórdia e o Pároco desta Vila.
O Governador Militar desta Praça e o Juiz de Direito da Comarca, achando-se nesta Vila.
Os três Vereadores que hão-de quebrar os Escudos, levando-os cobertos com pano.
O Escrivão da Câmara, o outro Vereador e o Administrador do concelho.
O Presidente da Câmara, a cavalo com o Estandarte da Vila ao ombro direito, inclinado de forma que arraste pela terra; aos lados, dois criados encarregues ambos do freio; dois à estribeira e dois encarregados da cauda do manto que cobrir o cavalo e deve arrastar pelo chão; e um Escudeiro para sustentar o pano do Estandarte; todos vestidos de rigoroso luto.
Um cavalo de respeito coberto com teliz preto, que tenha o brasão do Presidente da Câmara e coberto de pano, conduzido por um criado vestido com a libré respectiva e com mais dois criados aos lados, encarregado da cauda do teliz que deve igualmente rojar pelo chão.
Seguir-se-ão todas as pessoas decentemente vestidas que assim quiserem honrar com a sua presença este solene acto.
A música da Sociedade Filarmónica desta Vila.
Organizado assim, o Préstito percorrerá as ruas da Corredoura e de S.João até ao largo do mesmo nome e onde se quebrará o primeiro Escudo.
A guarda de Veteranos, chegando a este sítio e a distância competente, faz alto, voltando-se para o tablado, na frente do qual se colocarão o tambor ou tambores: passando para o lado direito do tablado, os Vereadores que têm de quebrar os Escudos, e para o esquerdo o outro Vereador, Escrivão da Câmara e Administrador do concelho.
Colocados deste modo estas diferentes pessoas, adianta-se o Presidente até junto ao tablado, e o Mestre de cerimónias seguido dos dois Escudeiros, dirige-se ao Vereador que tem de quebrar o Escudo, faz-lhe vénia e o acompanha até aos degraus do tablado, aonde dele recebe o chapéu e véu que cobre o Escudo e os entrega a cada um dos Escudeiros.
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Sobe então o Vereador ao tablado, volta-se para o Presidente, ao qual faz uma vénia, descobrindo-se nessa ocasião o Mestre de cerimónias como sinal para que todos o façam; solta o Presidente o brado, e em seguida quebra o Vereador o Escudo, cujos fragmentos deixa cair no chão, e o tambor ou tambores, dão três rufos nas caixas, destemperados. Desce depois o Vereador, e recebendo da mão do Mestre de cerimónias o chapéu e véu, é acompanhado ao seu lugar do mesmo modo que o tinha sido antes.
Colocados de novo todos na ordem que trazia o Préstito, segue o mesmo pela Rua do Vau, Rua Direita, Terreiro e Rua das Flores, até ao sítio designado, aonde se quebrará o segundo Escudo com todas as formalidades já prescritas.
Tornados que sejam aos devidos lugares pela ordem estabelecida, seguirá o Préstito pela Rua da Misericórdia até ao fim, donde voltará pela mesma e pela já dita das Flores até ao Terreiro, aonde se quebrará o terceiro Escudo pela mesma forma que os precedentes.
Concluída esta cerimónia, subirá a Municipalidade e Autoridades à Casa da Câmara e, aparecendo à janela do centro o Presidente e os Vereadores, soltará aquele o último brado com as mesmas formalidades do princípio; tendo-o já também dado em cada uma das ruas que o Préstito percorrer. (...)." (Ata CMC, 18-12-1853).
De acordo com a documentação conhecida, a Quebra dos Escudos pela morte de D. Maria II terá sido a derradeira realizada em Caminha. Não encontrámos menção nas atas camarárias a idêntica cerimónia quando do prematuro falecimento de D. Pedro V, em 1861. Porém, cinco anos antes, em 1855, o infeliz primogénito de D. Maria da Glória seria honrado na vila da foz do Minho de um modo mais perene, ao ser atribuído a um arruamento o topónimo "16 de Setembro", data da sua aclamação como rei.
REFERÊNCIAS
Artur de Magalhães Basto (1925). Na morte de um Rei. Revista de Estudos Históricos, vol. 2, nº. 1/3, 1925. Universidade do Porto, pp. 135-148.
Manuel de Carvalho Moniz (1961). Uma quebra dos escudos em Monsaraz. Revista de Guimarães, 71 (3-4) Jul.-Dez. 1961. Fundação Martins Sarmento, pp. 404-408.
Imagens: Terreiro de Caminha (João Almeida, 1886, In Minho Pittoresco); Escudo Real (Guimarães, século XIX); Quebra de Escudos (Lisboa, 1861, morte de D.Pedro V).