De origem medieval, instituída em toda a cristandade no ano de 1264 por bula do Papa Urbano IV, a festa do Corpo de Deus é celebrada em Portugal desde, pelo menos, o reinado de D. Afonso III. Apesar de enquadrada pela Igreja Católica, tinha a sua organização a cargo das corporações de mesteres, irmandades e confrarias ou vereações dos concelhos, constituindo-se assim como uma festividade de cariz simultaneamente religioso e civil.
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Num artigo dedicado ao assunto publicado no jornal "Notícias de Caminha" (5-4-1908), o publicista José Felgueiras revela que na vila de Caminha competia à Irmandade de S. Bento — uma agremiação de estudantes, responsável desde 1735 pela Capela de S. João, onde subsiste uma imagem do beneditino — organizar anualmente a procissão do Corpus Christi. Evocando a tradição, diz-nos que em tempos pretéritos a procissão caminhense continha profusos elementos profanos associados às confrarias dos ofícios, que a ela eram obrigadas a vir com determinadas coreografias: "...as tecedeiras tinham a obrigação de exibir o "Mister da Pella", que era certa figura que ia dançando na procissão (...) os moleiros também tinham por obrigação acompanhar a procissão, dançando e, com justa arrelia, diz-nos a tradição, que, em coro, cantavam a seguinte trova: Vós que me fizeste cá vir / Os vossos folles o hão-de sentir".
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Não devemos admirar-nos com esta descrição, que corresponde a outras conhecidas do Corpo de Deus um pouco por todo o país, do Minho ao Alentejo, evidenciando uma acentuada faceta profana e popular. A cargo dos diversos mesteres representados na procissão, havia exibições teatrais, jogos, músicas e danças — como aquela da "Pella" referida para o caso caminhense, talvez idêntica à existente na procissão da Póvoa de Varzim, que consistia numa dança em que um grupo de sargaceiras (em Caminha seriam tecedeiras) rodeava duas raparigas, dançando uma delas de pé, aos ombros da outra.
Estas manifestações de carácter profano associadas à procissão do Corpo de Deus seriam do agrado popular mas chocavam com a sensibilidade da hierarquia da Igreja e de algumas elites — obrigações "bárbaras e indecentes", assim as qualificava em retrospetiva o publicista caminhense acima citado. Daí terem sido alvo de sucessivas campanhas de moralização a partir de finais do século XV, pelo que progressivamente foram caindo em desuso, primeiro numas localidades, mais tarde noutras, como no caso de Caminha, onde se terão prolongado até às vésperas do liberalismo. Numa ata municipal de 1802 — a responsabilidade da festa do Corpo de Deus era agora da Câmara — ainda se refere a existência da "dança de sapateiros" e de uma "corrida de touros", e numa outra de 1805, intimam-se os carpinteiros da vila a "conduzirem o andor de S. Cristóvão na procissão de Corpus Christi, a que eram obrigados por costume antiquíssimo".
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Principal sobrevivente da vaga moralizadora da procissão — e não em todas as terras que a celebravam — foi a figura de S. Jorge a cavalo, em imagem ou representado, vestido de guerreiro e rodeado dos seus alferes e pajens. Presença obrigatória nas festas do Corpo de Deus
desde a época de D. João I (século XIV), estava associado à Casa Real e a sua importância e popularidade eram tais que houve tempos e locais em que chegou a chamar-se ao cortejo "procissão de S. Jorge" — o próprio Rei, como sucedeu com
D. Manuel II nos derradeiros anos da Monarquia, fazia questão de a integrar. Em Caminha, porém, por meados do século XIX, não havia qualquer imagem de S. Jorge para levar na procissão do Corpo de Deus. Por nunca ter existido ou, porventura, porque uma imagem antiga se perdera, quem sabe se por alturas das guerras liberais. Certo é que a situação se resolveu de um modo curioso que poucos caminhenses de hoje conhecerão.
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Sucede que corria o ano de 1852 quando, no dia 8 de maio, a cidade de Viana do Castelo recebeu a honrosa visita de Sua Majestade D. Maria II, acompanhada pelo rei consorte D. Fernando, o príncipe herdeiro D. Pedro e o infante D. Luís. A presença da família real em terras do Alto Minho fazia parte de uma larga digressão por diversas cidades e vilas de Portugal, iniciada em 15 de abril em Lisboa, mas tinha um especial significado para Viana. Era agora cidade e denominava-se "do Castelo" precisamente por decisão de D. Maria da Glória no ano de 1848, que desse modo reconhecera a resistência do Forte (Castelo) de Santiago da Barra durante a Patuleia. Os vianenses, representados pela Câmara, fizeram pois gala em agradecer a graça concedida pela Rainha, decorando as ruas e enfeitando as varandas da sua cidade com os melhores tapetes, colchas e panos. Sendo insuficientes aqueles de que podiam dispor, pediram ajuda aos municípios vizinhos, respondendo ao apelo a Câmara de Caminha emprestando "damascos e alcatifas da Igreja Matriz desta vila para servirem na recepção e estada de Suas Majestades e Altezas, a Rainha, El-Rei, o Príncipe Real e o Nobre Infante Duque do Porto, na dita cidade de Viana do Castelo." (Ata CMC, 2-6-1852). Sensibilizada pela ajuda desinteressada, decidiu então a vereação vianense retribui-la generosamente:
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"E constando que a dita Câmara [de Caminha] não possuía ainda a imagem de S. Jorge para as procissões reais e neste município há duas imagens, uma das quais já velha, por falta de melhor acomodação está pouco decentemente colocada na Secretaria da Câmara e é desnecessária, deliberaram que fosse oferecida para as funções da referida Câmara." (Ata CMVC, 22-5-1852).
A vereação de Caminha, ao tempo presidida por José de Oliveira Torres, 2º Barão de S. Roque, não deixou de assinalar a oferta nos seus acórdãos, aí ficando registado que a congénere de Viana do Castelo entendera "oferecer e brindar esta Câmara com a imagem de S. Jorge, indispensável nas Festas Reais a cargo dos municípios, com as suas pertenças, visto não o ter ainda, e naquela cidade de Viana do Castelo existirem duas; e cuja imagem já foi recebida, com a lança e a sela..."(Ata CMC, 2-6-1852).
Enfim, D. Maria II morreria ainda jovem no ano seguinte, em 15 de novembro de 1853, provavelmente sem saber que tinha sido a involuntária causadora da incorporação na procissão caminhense do Corpo de Deus da real figura de S. Jorge. Uma belíssima imagem, diga-se, atribuível pelo traje e decoração ao século XVIII, que hoje reside na Capela de S. João à espera que, todos os anos, num qualquer dia entre 21 de maio e 24 de junho, a vão retirar do seu descanso e a deixem por momentos cavalgar a toda a sela pelas ruas floridas da vila de Caminha.
REFERÊNCIAS
Luís Cyrne de Castro (1979). A Procissão do Corpo de Deus em Viana do Castelo (algumas notas). Cadernos Vianenses, Tomo III, Dezembro de 1979, pp.76-84. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo.
Amândio Jorge Morais de Barros (1993). A procissão do Corpo de Deus do Porto nos séculos XV e XVI: a participação de uma confraria. Revista da Faculdade de Letras — História, 10, 1993, pp.117-136. Porto: Universidade do Porto.
António Camões Gouveia (2001). Procissões. In Carlos Moreira Azevedo (dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Vol. P-V, pp.67-72. Lisboa: Círculo de Leitores e CEHR da Universidade Católica Portuguesa.
Arquivo Municipal da Póvoa do Varzim (2008). Arrematações e Contas da Pella — Cota CMPV / 1533 — Autos de arrematação (1788 — 1836). Disponível em http://www.cm-pvarzim.pt/areas-de-atividade/povoa-cultural/arquivo-municipal-pv/difusao-da-informacao/extensao-cultural/paginas-de-historia-com-estorias/Documento%20Maio.pdf [consultado em 7 de junho de 2014].