Confrontados no final do mês de junho com um evento público em Caminha e Vila Praia de Âncora que, anunciado como o "renascer" ou o "recuperar" da Festa de S.João, foi essencialmente marcado pela realização de "marchas populares", tivemos a curiosidade de recuar no tempo à procura dos modos de festejar o Baptista e os outros santos populares (S.António e S.Pedro) no passado do nosso concelho. Para isso, recuperámos os apontamentos da imprensa local do início de novecentos — de "A Voz do Âncora" (VA) ao "Correio do Minho" (CM), passando pela "Marinheira Bela" (MB), o "Jornal Caminhense" (JC) e o "Notícias de Caminha" (NC) — fazendo a prova da História, disciplina hoje de fraco estatuto curricular mas tantas vezes (ab)usada para propósitos de legitimação política ou comercial.
Assumimos as limitações cronológicas do exercício — de 1904 a 1924, época que, no entanto, foi a de maior riqueza e pluralidade dos periódicos publicados no município ao longo da sua história. Também logo percebemos que a natureza popular e relativamente espontânea dos festejos do solstício de verão não era demasiado propícia à atenção de uma imprensa escrita por e para uma elite burguesa, mais preocupada em realçar os sinais de "progresso" e da urbanidade possível, de que eram exemplo as, ao tempo, recentes festas da Senhora da Bonança, na Praia de Âncora, e de Santa Rita de Cássia, em Caminha. Sem parangonas ou grandes destaques — escusado será dizer que também sem imagens locais — foi pois nas "breves" e nas "correspondências" que fomos deparando com os quadros, os ruídos e os cheiros que, o pretexto de celebrar S.António (menos), S.Pedro (bastante) e S.João (muito), fazia emanar das ruas, largos e terreiros em noites quentes e tardes, mais ou menos tórridas, de junho.
Por entre a natural diversidade, foi ainda assim possível encontrar algumas variáveis constantes nos festejos dos santos populares nos quatro cantos do concelho de Caminha, de Riba de Âncora a Lanhelas, nas duas primeiras décadas do século XX. Percebe-se que a iniciativa e a organização era normalmente assumida por grupos de rapazes — "S.João Baptista [Caminha]: Os rapazes do grupo Cois'e Outra ...podem estar satisfeitos, porque a festa que fizeram ao Santo Precursor esteve animadíssima, brilhante mesmo, comparativamente com as dos anos passados" (JC, 25-6-1909) — ou mesmo de raparigas — "Nesta vila [Caminha] — S.Pedro: algumas raparigas ali da antiga rua da Corredoura (...) resolveram homenageá-lo condignamente e como melhor puderam (JC, 1-7-1909) —, sendo mais raramente da responsabilidade de mordomos combinados: "Em Venade: Também nesta freguesia foi festejado o S.João, improvisando-se-lhe capelinhas no lugar da Ponte e o largo da Igreja. Para ali foi a banda desta vila e a fanfarra de La Guardia. Os festeiros, segundo ouvimos, entraram em despiques e meteram-se em despesas, e por consequência houve animação em Venade. Banda e fanfarra tocaram lá até à uma hora da noite" (JC, 25-6-1908).
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A propósito da geografia das festas nas várias freguesias, vimos pelo exemplo de Venade que haveria lugares mais propícios para cada santo, como também sucedia na Praia de Âncora: "S.João: Com as festas do costume, fogueiras, descantes e danças populares, foi ruidosamente festejado o Santo Precursor do divino Messias, tornando-se notável o bairro piscatório, onde as danças se prolongaram até à madrugada d'hontem" (VA, 25-6-1905) — ou em Lanhelas — "A gente moça do lugar do Couto festejou, este ano, ruidosamente, o S.Pedro (...) O festival nocturno da véspera excedeu toda a expectativa (...) O largo onde se efectuou transformou-se por completo, semelhando um parque com alamedas, jardins, cascatas, grutas, por onde a água se despenhava (...) No local fizeram-se ouvir os melhores elementos da nossa Banda, dançando-se animadamente até às 3 da madrugada" (CM, 16-7-1920). O caso da vila de Caminha, pela densidade da sua malha urbana, constituía um caso curioso, com cada taumaturgo a ter o seu lugar particular. O preferido S.João festejava-se em frente à capela do mesmo nome, mesmo se a festa se estendia a outros locais — "Às 9 e meia da noite estava iluminada a frontaria da capela de S.João e a parte da rua do Visconde de Guilhomil desde a capela até a embocadura da Avenida Manuel Xavier, e no coreto, erguido no Largo Bento Coelho, próximo da mesma capela (JC, 25-6-1909); ao mais "esquecido" S.António estava reservado o atual Largo do Posto de Turismo, junto à sua discreta capelinha — "Nesta vila [Caminha] — Santo António: Como pré-noticiámos, foi também muito festejado o Taumaturgo que se venera na capelinha anexa ao antigo quartel militar do largo do Corpo da Guarda, hoje largo da Cadeia (JC, 17-6-1909); finalmente, S.Pedro ficava para si com a rua da Corredoura - "Revestiram bastante animação os festejos, nesta vila, ao S.Pedro (...) A cascata situada no largo da Corredoura foi preparada com arte e inexcedível gosto pelo Sr.Manuel Gonçalves Pires. No dia 28 constou a festa de fogo e a iluminação no largo, e parte da rua da Corredoura, com as tradicionais fogueiras, danças, etc..." (CM, 16-7-1920).
Quanto aos eventos que preenchiam os festejos e garantiam a diversão, havia-os quase obrigatórios como o fogo de artifício, tão do agrado dos minhotos — "S.João: Em diversos pontos da vila [Caminha] havia cascatas, queimando-se fogo chinês e subindo ao ar alguns foguetes" (JC, 25-6-1908) —, a música das bandas, prata da casa ou vindas das redondezas — "S.João Baptista [Caminha]... No comboio tranway das 5 e meia da tarde chegou a filarmónica de Candemil, que, executando uma peça em passo de marcha, seguiu desde a estação do caminho de ferro até a Praça do Conselheiro Silva Torres, e parando em frente aos Paços do Concelho, tocou o Hino Nacional" (JC, 25-6-1909) —, as fogueiras para saltar: "[Seixas] Como de costume, o Baptista foi solenizado com fartas fogueiras, em volta das quais os rapazes e as raparigas cantaram e dançaram animadamente até alta hora. No adro, de manhã, apareceram alguns carros..., etc, que os donos iam buscar, por entre as risadas e os ditos dos assistentes" (MB, 27-6-1907) — e, claro, as danças, os bailaricos improvisados e as cantigas ao desafio, como bem mostra o vivo relato da festa de S.João em Dem, em 1914, escrito pelo professor Domingos da Veiga Ferro: "No dia de S.João, passou-me à porta uma rusga, isto é, um numeroso grupo de rapazes, cantando e tocando ferrinhos, harmónios, flautas, clarinetes, canas, não faltando o alegre Germano dedilhando e soprando o bombardino! Estas rusgas percorrem os lugares principais, a cada passo organizando-se bailaricos em que todas as raparigas dançam e soltam a sua cantiga dirigida a este ou à aquele ou mesmo ao desafio..." (NC, 5-7-1914). Diga-se que Dem, longe ainda da alforria administrativa, não deixava os seus créditos por mãos alheias no que respeitava à música nos santos populares, mesmo fora do seu território: "Caminha: Nos dias 23 e 24 de Junho, realizaram-se na sua capela, situada na rua Almirante Reis, as Festas de S.João. Na véspera, à noite, tocaram as bandas dos Bombeiros Voluntários de Cerveira, que agradou bastante, e a filarmónica de Dem ("Enxota o Pito") que fez suar as raparigas. Durante a tarde, tocou no arraial a citada filarmónica. Também no Largo Silva Torres foi levantada uma cascata a expensas dp sr. João dos Antos Gavinho..." (CM, 10-7-1924).
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Nem sempre presentes mas repetidos em muitos lugares e ao longo dos anos, surgem os eventos desportivos, com destaque para as corridas de bicicleta — "No dia 24, dia de S.João, realiza-se a primeira corrida de bycicletas de Caminha (...) denomina-se "Resistência", sendo o seu trajecto de Caminha à estação d'Âncora e vice-versa. Está aberta a inscripção no Centro Velocipédico Caminhense e no Centro Velocipedista dos srs. Vianna & Lima, desta praia [de Âncora]" (VA, 19-6-1904) —, a construção de bonitas cascatas — "S.João: Em diversos pontos da vila [Caminha] havia cascatas..." (JM, 25-6-1908); "Caminha: Ontem e ante-ontem, realizaram-se nesta vila as Festas de S.Pedro, sendo-lhe levantada uma cascata na Corredoura, local dos festejos..." (CM, 10-7-1924) —, a largada de balões de ar quente — "S.João Baptista [Caminha]: ... Nos intervalos, foi queimado fogo de vistas, subindo ao ar alguns aeróstatos, um deles, principalmente, de muito bom efeito, pois que levava preso fogo de bengala..." (JC, 25-6-1909) -, a realização de jogos populares — "S.João Baptista [Caminha]: ... Seguiram-se as corridas em sacos e o mastro de cocagne, que provocaram hilaridade e muito divertiram o grande número de pessoas que se juntaram no Largo do Dr. Bento Coelho e proximidades da capela de S.João" (JC, 25-6-1909) — e uma brincadeira muito ao jeito da rapaziada mas que não agradava a todos, como em Riba de Âncora... — "[S.Pedro] Na noite de 28 para 29 do mês passado [Junho], pelas 4 horas da madrugada, uns sócios quaisquer foram a casa da srª. Francisca Domingues, do lugar do Pessegueiro, freguesia de Riba de Âncora, e "furtaram-lhe" dois carros de bois que levaram para junto da escola oficial daquela freguesia, no lugar do Espírito Santo.(...) é na nossa opinião uma brincadeira de péssimo gosto mas muito velha entre nós e... tolere-se a tradição!" (VA, 10-7-1904) — ...mas que também se fazia em Seixas: "[Seixas] Como de costume, o Baptista foi solenizado com fartas fogueiras, em volta das quais os rapazes e as raparigas cantaram e dançaram animadamente até alta hora. No adro, de manhã, apareceram alguns carros..., etc, que os donos iam buscar, por entre as risadas e os ditos dos assistentes" (MB, 27-6-1907).
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Enfim, o que não encontrámos em tempo ou lugar algum no nosso concelho foram "marchas populares". Também não admira, pois todos sabem que foram somente inventadas em 1932, na cidade de Lisboa, exclusivamente para o S.António, com a ideia original a pertencer ao cineasta e publicista Leitão de Barros, muito próximo do mestre da propaganda do Estado Novo, António Ferro. Uma autêntica tradição inventada para alfacinha entreter que as gentes do concelho de Caminha, conhecedoras e ciosas das suas autênticas raízes e tradições, bem poderiam dispensar neste início do século XXI.