O clássico lugre bacalhoeiro era um navio de três ou quatro mastros com as suas retrancas e caranguejas onde envergavam as graciosas velas de lona esbranquiçada que, com o tempo, se tornavam acinzentadas. O velame era em geral latino - triangular e quadrangular - excetuando o dos patachos que no mastro do traquete envergavam ainda velas de tipologia redonda.
O casco destes navios dividia-se em três secções: à proa, o rancho - o alojamento dos pescadores com os beliches sobrepostos a bombordo e a estibordo da mesa que ocupava a zona central, onde eram tomadas as refeições; à popa ou ré, ficava a o centro nevrálgico do navio com a câmara ou área reservada aos oficiais com os seus camarotes. Ainda na proa, mas no convés, situavam-se duas retretes rudimentares uma a bombordo e outra a estibordo para uso dos pescadores.
Note-se que o rancho correspondia ao espaço mais acanhado do navio e que albergava entre 50 a 70 homens, comparativamente inferior ao destinado aos oficiais, capitão, imediato e piloto. Apenas o camarote do capitão dispunha de casa de banho. Os camarotes do imediato ( 2º oficial ) e do piloto (3º oficial na hierarquia destes navios) dispunham de uma bacia para lavar a cara e as mãos. À ré havia ainda uma retrete de serviço comum.
Já as retretes dos pescadores, uma estrutura metálica externa, era composta no seu interior por uma tábua atravessada por um buraco no centro à qual estava ligado o tubo de descarga. Com mau tempo enchiam-se de água que subia pelo tubo de descarga e ninguém podia lá permanecer sentado, só de cócoras. Várias vezes sucedia o pescador sair de lá todo molhado. Como as portas destas retretes não resistiam à força dos elementos, uma vez arrancadas não eram mais reparadas ou substituídas, de modo que não havia privacidade.
A proa é a parte do navio mais arrojada e sujeita às investidas do mar. No interior das anteparas das retretes desta zona do navio havia dois suportes laterais para os homens se agarrarem e protegerem do violento balanço transversal e não serem cuspidos enquanto se aliviavam.
Falta referir a zona central do navio, a maior destinada à carga. As outras divisões estavam subordinadas a esta, a mais importante. Era ali que se armazenava o precioso bacalhau salgado. Esta zona, designada de porão, estava dividida em panas, cerca de oito secções e cada uma subdividida em três partes designadas por hinos: um central e dois laterais. As divisórias eram constituídas por pranchas de madeira, amovíveis. Quando o navio ficava carregado já toda a madeira tinha sido retirada à medida que o processo de salga avançava, de modo que no final o porão era todo um bloco compacto de bacalhau, o mais antigo quase já sem sal e completamente curado.
No porão, o processo da salga exigia saber e arte e era o trabalho de maior responsabilidade, pois se o bacalhau se estragasse todo o esforço de pesca teria sido em vão. Daí o grande cuidado e vigilância sobre a preciosa carga.
O navio dispunha ainda duma cozinha onde eram confecionadas as refeições : a refeição dos pescadores, ou da proa, e a refeição dos oficiais, ou da ré. Comer da proa ou comer da ré não era a mesma coisa. Os oficiais tinham direito a dois pratos por refeição: o prato da carne e o prato do peixe, mais sobremesa e café; à proa um só prato, invariavelmente bacalhau fresco cozido com batatas. Normalmente era esta a única refeição quente do dia servida quando os dóris regressavam a bordo do navio-mãe. Depois dos trabalhos de escala e salga, altas horas, era servida a chora, a tradicional sopa de peixe. À refeição dos pescadores, quase sempre a mesma coisa, designava-se eufemisticamente " pato com batatas", ou "batatas com pato".
De sublinhar, ainda, que a água era racionada e este prato para os pescadores era confecionado com água salgada, aliás o único elemento abundante. Normalmente as batatas ficavam duras mesmo depois de cozidas.
Os pescadores arreavam nos seus dóris e levavam um pedaço de pão e peixe frito para passarem uma jornada entre 16 a 18 horas a pescar. Quando se queriam aliviar, enchiam meio balde de água - que usavam para o isco cortado e também para escoar a água do dóri quando abundante - e apontavam o rabo ao centro do balde e ali faziam as suas necessidades. Com o frio gélido era custoso pôr o rabo ao léu, mas tinha que ser. Fora da borda não era possível porque o frágil dóri voltava-se e era o fim. O balde era o único recurso.
De regresso ao navio, as mãos já estavam lavadas com a água salgada permanentemente manipulada. Sacudiam-se, apenas ou esfregavam-se a qualquer coisa para poupar toalha. Depois da refeição a bordo do navio, começava o longo trabalho da escala e da salga se a pesca fosse abundante.
A cara e as mãos dos escaladores ficava cheia de sangue do bacalhau; os salgadores usavam luvas de borracha, mas a cara ficava toda salpicada de sal e restos da carne do peixe. Uma lástima. De resto, a cara poucas vezes era barbeada e tudo se colava aos pelos.
No final deste trabalho era costume juntarem-se seis homens para se lavarem. Cada um recebia uma ração de meio litro de água doce. Três despejavam os seus copos numa bacia e os seis "lavavam" as mãos. A água ficava uma pasta de sangue e gueira compacta, um caldo sólido. A seguir, os outros três, despejavam os seus copos; agora lavavam os seis a cara. É escusado dizer o resultado. Os que nunca desfaziam a barba, apenas a refrescavam.
Depois ia-se para o rancho comer o prato da chora, a sopa confecionada com caras de bacalhau fresco, cebola, alho, azeite e um pouco de arroz. Assim confortados, os pescadores iam descansar umas escassas três horas, normalmente,
- podia ser até menos ainda com a vigia - e recolhiam ao beliche estendendo-se na sua enxerga de palha. Dormia-se com a roupa vestida com que se tinha passado os dias a trabalhar e os dois pares de meias calçadas. O chulé confundia-se com tudo o resto, os cheiros característicos de tanta gente num espaço exíguo, e havia é que dormir a toda a força.
No cubículo dos beliches onde só cabia o corpo deitado, uma espécie de gavetões sobrepostos em filas de três andares, também se arrumava a roupa suja e a limpa por debaixo da enxerga, cuja palha ficava moída no final da viagem. As roupas eram separadas colocando a suja na metade aos pés e a limpa na metade da cabeceira. Assim o cheiro da roupa suja ficava mais desviado do nariz. De resto o rancho tinha sempre aqueles odores característicos ora da comida, da catinga, do suor, do chulé, do tabaco, enfim, da sujidade que apesar dos esforços individuais e coletivos não era possível superar. Dava-se mais atenção à lavagem do peixe que descia ao porão limpinho e ao convés, este baldeado diária e disciplinarmente todos os dias logo de manhã e depois da escala, claro, com água salgada.
Os piolhos também faziam parte do rol. Em tudo que tivesse pelo lá estavam eles alojados ao aconchego do frio glacial: era na cabeça, na região púbica e até no peito e nas costas dos mais peludos. Uma cena hilariante: dois pescadores resolveram catar-se, o que tinha de se fazer quando se podia, mas queriam saber qual dos dois tinha mais piolhos. E faziam uma aposta.
A campanha nos mares da Terra Nova era mais breve e depois ia-se a terra para abastecer. Depois seguíamos para norte a fim de prosseguir a campanha de pesca na Gronelândia. Eram três longos meses sem pisar terra a menos que houvesse uma emergência sem outro remédio. Quando em Setembro regressávamos ao porto de Saint John's, a primeira coisa era ir tomar um duche ao Portuguese Fishermen's Centre ( ou Casa dos Pescadores Portugueses ) . Ai que prazer incalculável aquela água quentinha e o cheirinho de um sabonete Lux ou Cuticura medicinal! Os "aparelhos" aliviavam-se agora dos parasitas e das sujidades banais acumuladas e os cabelos e barbas até luziam. Agora sim, um banho higiénico e reparador.
Até porque tínhamos de estar aptos para a noite nas discotecas da cidade, isto para os mais novos. Os mais velhos depois das comprinhas de lembranças para a família, ficavam a bordo na cavaqueira e a beber um copito. Depois cama, descansadinhos a sonhar com o regresso cheios de saudades.
O leitor pode perguntar: - Então, nunca cortavam o cabelo?
Alguns nunca cortavam o cabelo nem as barbas - muitas vezes por promessa - outros sim. Havia sempre um barbeiro improvisado num dia de brisa quando não se arreavam os dóris. Então os que desejavam iam à tosquia. Tesourada por aqui, tesourada por ali e aí resultava um corte de cabelo à marinheiro.
De regresso a Portugal, os trabalhos de limpeza do navio e dos dóris, o ensacamento das roupas no grande saco de lona dos pescadores. A água deixava de ser racionada. Todos cuidavam mais da sua higiene pessoal e vestidos com o melhor que levavam chegavam para abraçar a família e os amigos que os esperavam sem sinais de tudo quanto tinham passado. Para trás ficava tudo como um sonho. Os primeiros dias da chegada eram de novidade. Um renascer para a civilização.