Ensina-nos a psicologia, que a memória é a possibilidade de conservar experiências e conhecimento, bem como a capacidade de os evocar.
Contrariamente, a amnésia não só provoca

O "Lutador" |
a perda da memória das coisas passadas, como também a redução da capacidade de adquirir conhecimentos. Quando a amnésia se impõe sobre a memória, perde- se, consequentemente, o sentido de identidade e o conhecimento da história pessoal e colectiva. E, também, a possibilidade de projectar um futuro com raiz na história a acontecer.
É mais ou menos isto que vem a ocorrer relativamente à memória dos bacalhoeiros ancorenses, cuja participação na maior epopeia marítima nacional do séc. XX foi das mais significativas, nela se incluindo o valor humano e a tragédia.
Embora noutras localidades do país até com menor expressão, o assunto venha a ganhar grande relevo com eventos muito participados e significativos do ponto de vista cultural e social envolvendo as comunidades, tais como conferências, exposições e publicação de obras literárias, o certo é que por cá nada se feito. Ignorância total da liderança local sobre o assunto? Até aqui sim. Agora, com uma nova liderança, a Câmara Municipal de Caminha arranca com o evento " Viagens à Terra Nova"para evocar a memória dos bacalhoeiros. Em boa hora.
Pela nossa parte, cá estamos de novo a fazer anamenese, a resgatar a memória do enevoado árctico do esquecimento.
Neste apontamento, seguimos a esteira espumante do "Lutador" na sua campanha inaugural de pesca. Nele encontramos alguns ancorenses e, entre eles, aquele que foi o primeiro nosso conterrâneo a desaparecer nas águas geladas da Groenlândia. Para sempre. É o Damião Fernandes Baixinho.
Não imaginam os leitores, o que é perder-se um companheiro naquelas circunstâncias de lugar, de isolamento e ambiente inóspito. O que é desaparecer na solidão tenebrosa do abismo gelado.
Mas, importa deixar fluir a memória e acompanhar o trágico destino do Damião Baixinho que, em Abril de 1946, deixou Vila Praia de Âncora, despediu-se da mulher e da filhinha de dois anos e não chegou a conhecer a filha mais nova que, nessa altura, ainda era embrião. A mulher ficava grávida e só deu à luz quando já era viúva.
O "Lutador" era um navio "suis géneris": um navio-motor de três mastros que envergava apenas as velas de estai, a do traquete e o triângulo do tempo no mastro da mesena. Daí não poder classificar-se em rigor de lugre-motor, pois o reduzido velame e a potência do motor, tornavam-no autónomo relativamente às condições naturais. O motor, era, na verdade o seu principal meio propulsor de navegação e não a vela. O mastro intermédio servia de suporte aos aparelhos de manobra dos dóris - içar e arrear - com as suas talhas ou teques de laboração.
O navio foi construído nos estaleiros de Manuel Bolais Mónica na Gafanha da Nazaré em 1945. Media 46 metros de comprimento, tinha um motor de 535 HP Deutz e capacidade para 14 mil quintais de bacalhau salgado. Pertencia à Empresa de Pesca de Lavadores, Lda. do Porto. Fez a sua primeira campanha de pesca ao bacalhau como acima referimos, em 1946.
O Damião Baixinho, contrariamente ao nome, era um homem alto, magro e espadaúdo. Matriculou-se naquele navio novo junto com o seu cunhado Policarpo Pereira ( o Pá), o António Calisto ( Tone da Alta ), o Zé "Esquiva", isto para citar alguns ancorenses incluídos na tripulação do "Lutador".
Depois de pescar como era habitual algum tempo nos bancos da Terra Nova, em fins de Maio o "Lutador" partiu para a Groenlândia depois de abastecer em St. John's.
Encontrava-se, em Julho, no Danas, um dos bancos de pesca a norte do círculo polar Árctico. Eram quatro horas da manhã quando foram dados os "louvados" e todos os pescadores começaram a sair pressurosos dos seus beliches. O Damião, antes de se levantar, olhou a boneca que tinha comprado em St. John's para oferecer à filhinha quando regressasse a Portugal e passou uma mão sobre ela carinhosamente.

Damião Fernandes Baixinho |
Dormiam vestidos e era só enfiar as botas, tomar o frugal pequeno almoço, vestir a roupa de oleado, aviar o foquim com umas postas de peixe frito e um naco de pão, receber o isco para os anzóis e "vai com Deus".
Os dóris foram lançados à água estanhada e inquieta como o céu enevoado daquele de muitos dias. Uma ligeira brisa sugeria a içar a vela e a afastar-se em busca da sua sorte. Mais próximo do Damião seguia o dóri do seu cunhado Policarpo. A dada altura, guardada a distância conveniente um do outro, ambos arrearam as velas e começaram a largar as linhas. O frio era intenso potenciado por aquela brisa ligeira de nordeste. Uma fraca rebentação aflorava sobre a ondulação larga.
Às dezoito horas o navio deslocou-se em emposta para sotavento e içou a bandeira negra de chamada dos dóris. Aqueles pontinhos minúsculos, os dóris, começaram a chegar de várias direcções ao navio-mãe, distante. Um a um, descarregaram o peixe e foram içando para bordo todos os dóris. Esta tarefa levou umas horas. Porém, faltava um dóri. O Baixinho não chegara.
O capitão indagou os outros pescadores, para saber se o tinham visto e a que rumo. A resposta que recebeu foi a de que ele teria dito aos que passaram perto dele que "lhe faltava pescar mais uns peixinhos" apesar do dóri já estar bem ajeitado de peixe.
O dóri, do inglês wary ( arriscado) é uma embarcação frágil e perigosa. O Damião, entusiasmado com os peixes que generosamente morderam nos seus anzóis, foi carregando cada vez mais a popa do dóri. É o sonho do pescador bacalhoeiro: pescar, pescar sempre e mais bacalhau.
A popa do dóri já estava a um palmo fora de água. Mas, o Damião continuava entusiasmado com a abundância de peixe. Não reparou que uma "mareta", uma pequena ondulação, rebentou sobre a popa do dóri que começou rapidamente a afundar-se. Nada podia fazer. O esforço de tentar aliviar o dóri deitando peixe ao mar era inglório, apenas adiou o instante fatal por segundos. Os seus gritos foram tragados pela distância e ninguém os ouviu. Um silêncio lúgubre se abateu, depois da luta breve e desesperada no mar gelado. Com os membros bloqueados pela temperatura glacial, sem poder fazer qualquer movimento para manter a cabeça fora de água, o seu corpo descia inexoravelmente para o abismo puxado pelo laço da morte.
A bordo do "Lutador" um misto de raiva e impotência tomava todos. O capitão acionou a sirene de bordo, lançou dois foguetes e levantou ferro para iniciar as buscas pelas redondezas. A dada altura avistaram um remo, a seguir o foquim com as iniciais do Damião. Não havia dúvidas: o Damião tinha-se afundado.
As lágrimas corriam espontâneas por aqueles rostos endurecidos com as barbas de muitos dias por fazer, os cabelos desgrenhados a sair dos gorros e das boinas. Eram lágrimas impossíveis de conter, lágrimas de dor sentida e de raiva por nada poderem fazer pelo companheiro perdido para sempre.
A escala e salga daquele dia até à meia-noite foi silenciosa e absorta em negros pensamentos. Quem se seguiria naquele trágico destino? Só o cansaço físico e psicológico fez adormecer por escassas três horas de descanso os pescadores nos seus beliches. O navio, ancorado, era um mundo isolado num vasto horizonte.
Às quatro horas da madrugada, voltavam os "louvados" e a mesma luta de todos os dias, reprimida toda a amargura de umas escassas horas antes para ganhar outra vez energia e ambição. A ambição de pescar muito bacalhau.
A notícia da tragédia chegou a Vila Praia de Âncora em Agosto.
O regresso dos ancorenses embarcados no "Lutador" a Vila Praia de Âncora em Outubro, trouxe de novo a dor à família do Damião Baixinho que não regressou com eles.
Lá, longe, ficou sepultado no mar gelado da Gronelândia. Pouco depois, nascia a Elisa, a sua filha que nunca conheceu o pai, enquanto a Lina de dois anos, na sua inocência, não percebia ainda a dimensão do que se passara.
O "Lutador" afundou com fogo a bordo no Virgin Rocks, mar da Terra Nova, no dia 1 de Outubro de 1964, dezoito anos depois. Uma vida breve e trágica, como breve e trágica foi a do Damião Baixinho, um jovem.
A tripulação foi salva pelos navios portugueses que se encontravam na zona: o "Avé Maria", o "Ilhavense" e o "Celeste Maria". Depois de estar a arder durante várias horas, uma grande explosão nos tanques de combustível terminou a agonia do "Lutador". Três tripulantes atiraram-se à água pouco antes da explosão e foram resgatados pelas baleeiras daqueles navios. De St. John's, saiu o "Gil Eanes" para trazer os náufragos para terra.
O mar, continua a lembrar-nos o imenso prazer de o contemplar e de o navegar. Mas, também, a memória de quantos nele perderam a vida. Cada onda que se repete na praia, é como a saudade que não passa.