Duas décadas antes do primeiro jornal escrito e editado localmente - "A Voz do Âncora" (1904-1905) - servir de porta-voz dos interesses da Praia de Âncora, foi nas correspondências para os periódicos regionais que começaram a aflorar os problemas e aspirações da nova e dinâmica área litoral da freguesia de Gontinhães. Impulsionada pela abertura da estrada real em 1857 e a instalação do caminho de ferro em 1878, emergia aquela que depressa se afirmaria como a principal estância balnear do Alto Minho, como se podia ler no "A Estrela de Caminha" no dealbar da época balnear de 1882:
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"...Gontinhães, que há 10 anos era já importante na estação balnear, está sendo hoje uma das mais concorridas do país nessa época. (...) Dantes, os habitantes da Ribeira de Âncora precisavam de ir a Viana todas as sextas-feiras sortirem-se do indispensável para a sustentação das suas famílias; hoje, já não acontece assim: em Gontinhães há tudo o que se precisa e pelos mesmos preços do mercado de Viana, ou mais barato. Tem grandes e sortidas lojas de comércio, fábrica de pão, correio, farmácias e mercado a que concorre toda a espécie de cereais, manteiga, carne de porco, aves, frutas, hortaliças, etc. (...) Tem um excelente café, bilhar e club onde se reúnem as famílias em agradáveis soirées..." (A Estrela de Caminha, 29-8-1882)
Este tom elogioso e otimista era o mais comum nas crónicas e artigos datados da Praia de Âncora, de publicação circunscrita ao período de banhos. Raramente assinados, as aparências apontavam quase sempre para a pena ilustrada de um qualquer visitante ocasional ou então frequentador anual dos banhos, de algum modo exterior à terra:
"...desde Julho a Outubro, aquela povoação apresenta-nos um lindíssimo aspecto. O comerciante é jocoso, o camponês alegre, os proprietários das casas esfregam as mãos. Os géneros saem, as casas alugam-se, o dinheiro circula. Com o mês de Novembro entra de novo a desanimação. (...) Os banhos a fizeram, os banhos a sustentam, com os banhos há-de morrer, se diversão mais amena os vier substituir." (A Estrela de Caminha, 8-8-1882)
Porém, com a expansão urbana e económica a trazerem consigo necessidades acrescidas mas também maiores pretensões no contexto sócio-político caminhense, a partir de certa altura percebe-se uma mudança no tom das correspondências oriundas da Praia de Âncora. Apesar de manterem o anonimato, habitual na época, os articulistas são agora locais, por isso mais reivindicativos face à Câmara e mesmo autocríticos quando as coisas não correm bem por culpa própria dos ancorenses, como no verão de 1884:
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"Âncora, 13 de Setembro - Têm chegado a esta praia bastantes famílias, mas ainda assim sente-se a falta de entusiasmo que havia nos anos anteriores, e todos são concordes que muitas famílias, que aqui costumavam concorrer, este ano foram procurar noutras praias as economias que nesta não pode haver. Os proprietários das casas alugam-nas por um preço fabuloso, superior, muito superior, ao preço por que na Foz [Porto] e outras praias se conseguem. Ao preço exorbitante das casas, acresce o preço fabuloso por que se vendem as frutas, legumes, aves, etc, e assim fogem as famílias: se isto não muda, dentro em pouco a praia deixará de ser concorrida.(...)
Mais: aqui não há uma só pessoa que se interesse pela prosperidade desta praia que deveria ser uma das melhores do país, porque se aqui houvesse verdadeiro patriotismo, não se consentia que fosse levantada uma casa sem que primeiro fosse alinhada com a avenida que se projecta fazer. (...). Os proprietários procuram só o seu interesse e limitam-se a fazer gaiolas, como se os banhistas fossem algum bando de andorinhas que aqui vem passar a quadra balnear!
A Câmara, essa dorme a sono solto e nada lhe importa: e, assim, que fazer? (...) Trate-se pois disto a sério, e procure-se dar a esta terra os melhoramentos que precisa. Estimem-se os nossos hóspedes e empreguem-se os meios necessários para os chamar, porque são eles os que nos vêm ajudar a viver e a dar à nossa terra a grandeza que todos devemos desejar." (A Estrela de Caminha, 16-9-1884)
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Notável a clarividência na defesa do interesse comum da "nossa terra" em detrimento dos ganhos particulares, como sucedia com a inflação dos preços de aluguer das casas e do comércio. Curiosamente, um problema que alguns anos antes já merecera reparos por parte de Augusto Pinho Leal - a quem se atribui um raro desenho do primitivo portinho datável de 1874 - no seu conhecido dicionário corográfico: "Muito mais concorrida seria esta bela praia se os habitantes da Lagarteira se compenetrassem melhor do que eram os seus verdadeiros e duradouros interesses, moderando-se mais nas rendas das casas, na venda dos géneros alimentícios, etc, o que tem afastado daqui muitas famílias...".

Num outro artigo na semana seguinte, em que evidencia pertinentes preocupações urbanísticas, o citado articulista do "A Estrela de Caminha" vai mais longe no seu apelo ao "patriotismo" ancorense e, talvez para espicaçar os conterrâneos, não hesita em estabelecer comparações com a vizinha Praia de Moledo, onde entretanto evolui um processo semelhante de crescimento e modernização:
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"Praia d'Âncora, 20 de Setembro - (...) Nós vemos que todos desejam edificar prédios ao longo da estrada, e não vemos que se cortem ruas que dêem fácil acesso à praia e, por isso, é que o banhista que não tiver a felicidade de conseguir casa no Largo das Necessidades [antigo Largo da Lagarteira; atual Praça da República], há-de percorrer toda a estrada para tomar a avenida que conduz ao local dos banhos, tornando-se este trajecto incómodo e fastidioso. (...) E tudo isto porquê? Porque na freguesia não há quem se interesse (...). Se houvesse na Praia de Âncora um Afonso de Moledo, veriam se sim, ou não, a terra progredia..." (A Estrela de Caminha, 23-9-1884)
Eventualmente a Praia de Âncora teria os seus "Afonsos" e o tão desejado progresso, indo ao encontro dos anseios do anónimo correspondente de 1884. Estava ainda longe o republicanismo - que vinte anos depois assumirá a ambição política da freguesia -, muito mais distante o mítico 8 de julho de 1924, que servirá de parca consolação para a frustrada autonomia municipal, mas acabara de nascer o patriotismo ancorense.
REFERÊNCIAS
Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal (1875). "Lagarteira" In PORTUGAL ANTIGO E MODERNO : DICCIONARIO GEOGRAPHICO, ESTATISTICO, COROGRAPHICO, HERALDICO, ARCHEOLOGICO, HISTORICO, BIOGRAPHICO E ETYMOLOGICO DE TODDAS AS CIDADES, VILLAS E FREGUEZIAS DE PORTUGAL. Vol. IV, pp.15-16, Lisboa: Edição Mattos Moreira 1875.
"Vista do Fortim e do Portinho da Venda Velha na Lagarteira, freguesia de Gontinhães" (desenho atribuído a Pinho Leal, cedido pela revista "O Tripeiro"). Arquivo do Alto Minho. 3º Volume (III da 1ª série) - [1948-1950], p.20.