"A partir do momento em que alguém se assume como membro de uma assembleia municipal fica sujeito a que, nas respectivas reuniões, possa aparecer em imagens, da mesma forma que aquilo que aí diz possa ser gravado, num clima de absoluta transparência", extracto do despacho do Ministério Público que arquivou a queixa apresentada pelo deputado e líder da OCP na Assembleia Municipal (AM) de Caminha Jorge Nande, contra o C@2000, o seu director Luís Almeida, o ex-presidente da Câmara Municipal Miguel Alves e o presidente da Assembleia Municipal Manuel Luís Martins.
Numa única queixa apresentada junto do Ministério Público (MP), Jorge Nande, líder da bancada da OCP (coligação de direita na Assembleia Municipal de Caminha formada pelo PPD/PSD, CDS/PP, Aliança e PPM), acusava-os da prática de vários crimes.
Na sequência da participação, o deputado municipal tentou que após a conclusão do inquérito aberto pelo MP na sequência de mais esta queixa apresentada por este eleito local (recorde-se que o MP já tinha arquivado outra queixa, os arguidos fossem acusados, entre outros possíveis crimes, do de "gravações e fotografias ilícitas" devido às transmissões das assembleias municipais.
Eleito para "cargo público"
O Ministério Público concluiu, entre outros considerandos, que "quem é eleito para uma assembleia municipal sabe que as reuniões de tal órgão do poder local são públicas", pelo que, acrescentou, "o que é dito em tais reuniões, sempre salvo o devido respeito, destina-se ao público", razão de não entender como "a sua filmagem nesse local possa ser considerada contra sua vontade". Recorde-se que o queixoso vinha-se opondo a que o Caminh@2000 colhesse fotografias e realizasse gravações (queria que se cingisse a tomar notas) e colocava entraves a que as assembleias municipais fossem transmitidas pela Internet, além de contestar a legalidade das emissões online, a par de pretender autorizar que em algumas reuniões a sua imagem fosse visualizada, e noutras não.
"Não são ilícitas as captações de imagens/fotografias/voz"
Contudo, o MP não acolheu as teorias do queixoso, entendendo que "não são ilícitas as captações de imagens/fotografias/voz de membros de órgãos deliberativos no âmbito das reuniões públicas de tais órgãos", determinando o arquivamento da queixa "nesta parte", porque ainda sobejavam outras queixas, refira-se.
"Crime de publicidade e calúnia agravada" também arquivado
Sendo o C@2000 um visado especial deste deputado municipal, noutra parte da queixa, insurgiu-se contra um extracto de uma notícia publicada na sua edição 1052, em que se escreveu que "Esta e outras conturbadas intervenções deste deputado municipal estiveram na origem da suspensão dos trabalhos por algum tempo, como destacamos, às quais nos referiremos oportunamente, pese embora possa não agradar a quem tem um conceito muito sui generis da vida democrática, tal como tiveram outros no tempo da outra senhora".
Jorge Nande sentiu-se "atacado na sua honra e consideração"
Sentindo-se Jorge Nande "atacado na sua honra e consideração", pelo facto de a notícia também ser "tendenciosa" e não corresponder à verdade do ocorrido nessa AM e "ir para além de relatar factos" - assim tentou justificar a denúncia -, decidiu acusar o C@2000 e o seu repórter, de "um crime de publicidade e calúnia agravada".
Também neste âmbito, o MP não deu guarida à pretensão do queixoso, após analisar se a notícia/texto tinha "caracter difamatório" ou era "uma manifestação lícita da liberdade de expressão" do jornalista.
"Impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância"
Realçamos uma das apreciações do MP contidas no despacho e que vem ao encontro do que já escrevemos acerca dos famigerados "slapps": "Pretende-se evitar os efeitos nefastos da existência de um vasto tipo penal de "difamação" que provoque o conhecido efeito de arrefecimento de condutas ("chilling effect"), surgindo as ameaças de prossecução por difamação como uma "particularmente insidiosa forma de intimidação"(Resolução CE 1577 - 2007), que tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância".
"Em questões de interesse geral a tutela da honra é residual"
Mais adiante, o Ministério Público refere que "se no geral prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, no campo da luta política e questões de interesse geral a tutela da honra é residual", invocando posteriormente que, por exemplo, "em questões de interesse geral pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão", citando um acórdão e jurisprudência relacionada.
Assim, o MP "tendo em consideração o teor das expressões utilizadas pelo arguido (C@2000), bem como as circunstâncias em que as escreveu, somos de parecer que as mesmas não ultrapassaram os limites impostos pelo seu natural direito de se expressar livremente", nem "foram postas em causa a honorabilidade e a credibilidade do queixoso na sua esfera privada, mas que apenas transmite um juízo de valor sobre o modo como, em determinado momento, e na esfera da vida política, foram tomadas certas decisões por parte do assistente (queixoso) no âmbito da sua atividade política".
Em conclusão, por considerar estar perante um caso de "falta de tipicidade", o Procurador determinou o "arquivamento dos autos".
Mas não se ficou por aqui o deputado Nande.
"Nunca indicou concreta factualidade"
Incluiu na queixa outros crimes de "difamação e injúria" de que eventualmente teria sido vítima em várias sessões da Assembleia Municipal de Caminha, e apesar de se ter comprometido a indicar detalhes dos mesmos, quando foi inquirido no prosseguimento do inquérito solicitado ao Departamento de Investigação e Acção Penal de Viana do Castelo, o que é certo é que nunca o fez, nem quando posteriormente foi de novo inquirido.
O MP realçou o facto de "nunca" ter acrescentado qualquer "concreta factualidade" por ele "abstractamente referenciada como crimes de injúria e difamação", e muito menos "a identidade dos seus autores", razão de também ter caído esta queixa.
"Violação do dever de sigilo"(!)
Prosseguindo com esta saga levada a cabo pelo eleito da coligação de direita, após ter ido substituir um colega - que renunciara ao cargo, refira-se -, consta também dos autos de arquivamento, uma tentativa peregrina de acusar os autarcas e o C@2000 de um crime de "violação do dever de sigilo" de protecção de dados pessoais.
Alegou que a captação de imagens/vídeo e divulgação de fotografias das assembleias municipais de final de 2021 e princípios de 2022 da figura do queixoso, se enquadravam numa tipificação penal que protegeria a divulgação de dados pessoais.
No entanto, o MP não avalizou a interpretação do denunciante, arquivou igualmente esta queixa, por entender que a "factualidade denunciada não integra o crime de violação de sigilo" que ele pretendia imputar aos arguidos, nem eles eram obrigados a proteger dados pessoais, a par de apenas se limitarem a captar e divulgar imagens vídeo e fotografias do deputado municipal "democraticamente eleito", vincou o Procurador, captadas em sessões públicas das assembleias municipais.
"Crimes de abuso de poder e favorecimento pessoal" também caíram
A quinta queixa apresentada no conjunto da denúncia, dirigia-se ao presidente da Assembleia Municipal, acusando-o de "favorecimento pessoal praticado por funcionário" e "abuso poder", por ter convocado a Assembleia Municipal para o Cineteatro dos Bombeiros Voluntários de Vila Praia de Âncora "sem aprovação do órgão", e por nada ter feito "para impedir que as sessões fossem transmitidas on-line, nem tão pouco que não fossem captadas fotografias" suas no decorrer das assembleias.
Refira-se que a realização das assembleias no cineteatro ancorense tiveram lugar em período de pandemia, em lugar de ser no Cineteatro Valadares, em Caminha, "face às exigências sanitárias", pelo facto de ser possível um distanciamento maior nesta sala de espectáculos.
Esta queixa mereceu igualmente a rejeição do MP, porque, alegou o Procurador, "a factualidade denunciada nos autos, não revela sequer em abstrato, qualquer dos elementos objectivos e subjectivos integradores do tipo de ilícito em apreço".
Arguido dificilmente seria condenado se fosse a julgamento
"Não se vislumbra denunciada factualidade que aponte no sentido de que com este mau uso de que com este incumprimento dos deveres inerentes às suas funções, o visado tenha agido com intenção deliberada desse incumprimento com o intuito de se beneficiar ou prejudicar terceira pessoa" (no caso o denunciante).
O MP acentuou que, perante a factualidade apurada e os crimes que estão em causa, o arguido só deveria ser levado a julgamento se "a condenação é suficientemente provável", o que "dificilmente" deveria suceder perante "a abundante prova testemunhal produzida nos autos, designadamente os depoimentos de deputados municipais das forças política representadas na AM.
Queixas dos contratos públicos em inquérito autónomo
No conjunto das queixas que acabamos de explanar, o denunciante incluiu os contratos celebrados entre a Câmara Municipal, o C@2000 e uma empresa de televisão que transmite as assembleias municipais.
Jorge Nande fala da prática de eventuais crimes de prevaricação praticados pelos envolvidos.
Aguarda-se pelo desenrolar do inquérito que decorre autonomamente a esta denúncia conjunta inicial, depois de ter sido extraída certidão nesse sentido e enviada para o DIAP Regional do Porto.
Por tal motivo, o MP optou por não se pronunciar sobre a "factualidade" invocada por Jorge Nande nesta queixa conjunta, no que respeita aos crimes indiciados por este deputado municipal.
Pedimos ao queixoso se pretendia recorrer (abrir instrução) do despacho do MP, mas não nos respondeu.