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Caminhenses em diferentes países contam-nos como encaram a pandemia

Bélgica e França (um regresso a este país) são os dois estados europeus de onde recolhemos esta semana vivências de caminhenses que aí labutam diariamente nestes tempos difíceis e perigosos tendo como inimigo algo invisível mas implacável.

Júlio Domingos Gonçalves Afonso (Bélgica)

Daniela Filipa Pires Roteia (França)

Daniela Filipa Pires Roteia

Orléans é uma cidade francesa onde desde os anos 60 se concentraram algumas dezenas de famílias caminhenses, na altura do grande surto migratório de portugueses em busca de melhores condições de vida ou contornando dessa forma uma presença quase certa na Guerra Colonial a que o regime de então condenava a juventude.

A jovem deense Daniela Filipa Pires Roteia, de 32 anos, com dois filhos, não se integra nessa leva de caminhenses (na sua maioria da vila de Caminha) que rumou para França em truques ou atravessando a pé os Pirenéus nessa década de sessenta.

Foi parar a Orléans com seu marido (enfermeiro como ela e natural de Vila Nova de Anha), depois de concluído o curso de enfermeira na Escola Superior de Enfermagem de Viana do Castelo em 2010, porque não encontrava emprego estável nem devidamente remunerado no país que lhe deu um curso, motivado pela crise que rebentou na altura. Começaram a namorar ainda durante o curso, e tentaram encontrar emprego logo que terminados os estudos. Apenas conseguiam trabalho três dias por semana, e o que ganhavam mal dava para alugar um apartamento. Além do mais, era-lhes exigida experiência profissional, o que era impossível de conseguir para quem acabara de concluir a licenciatura. Colegas seus já tentavam colocação em Espanha, o que os levou a seguir as sus pisadas, mas sem sucesso, até que souberam em 2011 que o Centro Hospitalar Regional de Orleães (um Hospital Central de referência desta região) procurava enfermeiros, tendo publicitado essa necessidade no Centro de Emprego de Portugal, sem o requisito da experiência profissional, o que era importante para eles. "Era o ideal, até para ganharmos experiência profissional para nossa carreira", o que os levou a concorrer.

Daniela Roteia fez os estudos primários na Escola Básica de Dem ("fui uma das últimas a estudar na telescola e, agora, voltamos atrás por causa da pandemia, foi exactamente isso o que eu pensei", frisou) e completou o ensino preparatório e secundário da Escola C+S de Caminha, ingressando posteriormente na Escola de Enfermagem da capital do distrito.

Como pertence a uma geração mais recente, os seus contactos com outros caminhenses residentes em Orléans não se produziram, tendo conhecido posteriormente uma família de Dem (Céu e Fernando Anselmo), mas que regressaram a Portugal.

Admitiu que ao não dominarem a língua francesa "foi complicado de início", mas "tivemos muita sorte, porque o Centro Hospitalar disponibilizou-nos aulas de francês durante seis semanas (quatro vezes por semana, e nos demais dias íamos trabalhar no hospital) e assim foram ganhando vocabulário que desenvolveram junto dos próprios serviços hospitalares.

Danila Roteia encontra-se colocada nos serviços de doenças infecciosas e tropicais (infeciologia), tendo começado pelo internamento e desde 2017 nas consultas externas, embora sempre que necessário "regresso ao internamento, como foi agora o caso por causa do Covid".

Questionada sobre a forma como ambos encararam a pandemia, esta enfermeira recordou que inicialmente, muitos pensavam que era só uma gripe passageira e que "nem sequer chegaria a França" até que começaram a surgir os primeiros casos.

"Tivemos a sorte de que a nossa região foi das últimas a ser tomada pelo vírus", o que "permitiu que as pessoas (e o hospital) se preparassem minimamente, porque sabíamos que mais dia, menos dia, teríamos casos".

Esta previsão e organização "correu muito bem", confessou.

Houve alguns casos de portugueses (mais de franco-portugueses) contaminados, embora não se tivesse registado qualquer caso de emigrantes ou descendentes de caminhenses atingidos mortalmente pelo vírus.

Se em Orléans o combate à doença contagiosa se revelou bastante eficaz, em grande parte de França isso não sucedeu. Isto pareceu estranho aos olhos de quem vê o país galo como uma potência europeia e mundial, incluindo no campo da saúde.

Daniela Roteia acredita que o facto de os franceses terem acreditado que não seriam atingidos foi uma das razões. Refere ainda uma concentração de uma religião no leste da França, que congregou pessoas de toda a parte, e que originou a proliferação da doença por todo o lado numa fase inicial, doença esta que "não distingue idades, nem categorias sociais".

Admitiu que o Governo francês foi obrigado a decretar medidas muito restritas, considerando ter sido a melhor solução. Chegaram inclusive a exigir declarações escritas para que as pessoas pudessem sair de casa, e só assim as coisas melhoraram", caso contrário, "poderia ter sido muito pior".

Pedimos a Daniela Roteia que nos esclarecesse sobre a forma como uma profissional de saúde encara uma doença como esta que pode pôr em causa a sua própria vida.

"No início, até nem tinha muito receio, porque temos muitos doentes com doenças infecciosas como o HIV e hepatites", e são obrigados a terem "os cuidados necessários", pelo que não são contaminados facilmente. Além disso, "durante todo o ano estamos expostos a todos os corona vírus e já há uns seis/sete anos havia suspeitas disso".

Contudo, com o evoluir da pandemia, "comecei a ficar com medo quando verificamos que não atingia só pessoas idosas como nos diziam no início, podendo atingir pessoas mais novas".

"Degradação da doença era tão rápida que assustava"

Esta enfermeira foi constatando ainda que "as pessoas estão bem no meu serviço, e de repente degradam-se e em 30 minutos têm de ir para os cuidados intensivos". Insistiu que a degradação da doença "é tão rápida, tão rápida que isso assustava um bocadinho".

Outra situação que a preocupava prendia-se com a resistência das pessoas infectadas a serem internadas quando o seu estado de saúde o exigia.

Falou de outras situações em que muitas pessoas não queriam permanecer em casa porque viviam em apartamentos pequenos com a família, o que era complicado de suportar, entendia-se, mas noutros casos, não queriam sair das suas habitações com temor a poderem contaminar os seus familiares quando regressassem.

"Esta foi a profissão que eu escolhi"

Reconheceu que ela própria se debateu com este segundo dilema, mas, vincou: "esta foi a profissão que eu escolhi", o que a leva diariamente a enfrentar a doença com coragem e profissionalismo, mesmo sabendo que tem marido e dois filhos pequenos em casa.

Falando das medidas de precaução que seguia no final de um turno de trabalho, contou-nos que tomava banho no próprio hospital antes de regressar a casa e lavava várias vezes as mãos, a par de outras atitudes já habituais e conhecidas de todos.

Referiu ainda que pelo facto de estar colocada no serviço de infeciologia, "tivemos desde o início ventiladores, máscaras, luvas e demais material de protecção", o que não sucedeu em alguns serviços, designadamente no início da pandemia, porque "privilegiaram os serviços que estavam em contacto directo com o Coronavírus, como era o caso das urgências, infeciologia e cuidados intensivos".

Esta enfermeira natural de Dem confirmou-nos que tal como em Portugal, também em França as pessoas começaram desde logo a recear deslocar-se aos centros de saúde e hospitais para outras consultas ou cirurgias programadas, até porque todas elas foram adiadas, com excepção das urgências e tratamentos oncológicos. O recurso a tele-chamadas foi uma das alternativas seguidas igualmente em França, embora, presentemente, a normalidade dos serviços esteja a ser retomada quase por inteiro. Esta prática permitiu ainda aos médicos reconhecer que em muitos casos, é preferível e mais prático para os próprios utentes, utilizar as consultas por telefone, sem necessidade de se deslocarem aos hospitais.

No dia (9 de Junho) em que contactamos com esta profissional de saúde que presta um serviço de qualidade na sua profissão, graças aos ensinamentos obtidos em Portugal, revelou-nos que não existia qualquer internamento nos serviços de infecciologia e pneumologia, apenas havendo alguns doentes, poucos, nos cuidados intensivos, alguns dos que ficaram infectados em Março, Abril e Maio.

Explicando todo este ambiente preocupante que dominou durante largas semanas a vida dos franceses, assinalou igualmente que houve necessidade de transferir doentes, inclusive de helicóptero, de zonas mais afectadas para outras com menos prevalência da doença, criar comboios hospitalares de campanha para acolher doentes. Foi o que sucedeu no seu hospital, tendo recebido pacientes de Rams transportados de autocarro medicalizado, "porque não tinham camas suficientes nos cuidados intensivos".

A forma como a utilização de máscaras foi variando ao longo da evolução da pandemia, foi das situações mais contraditórias em muitos países, incluindo Portugal e França.

Esta foi a opinião de Daniela Roteia: "No início, o vírus era muito virulento e eu acho que a utilização de máscara era essencial, ao contrário das luvas que nós desaconselhávamos. Neste momento, não se sabe muito bem porquê, foi perdendo virulência. Se as pessoas forem passear e não estiverem em contacto com ninguém, não é necessária a máscara. Ela deve ser usada se estiverem muitas pessoas no mesmo sítio e não houver possibilidade de arejamento".

Festivais e festas - como a de S. Silvestre e Sª das Neves, em Dem - estão proibidas e, Daniela Roteia concorda com esta decisão, dando como exemplo a manifestação realizada em Portugal contra o racismo - mobilizações com as quais concorda - mas que "foi um perigo muito grande", por considerar serem muito "prematuras" estas acções, atendendo a existir ainda muito desconhecimento sobre a doença.

Sendo natural do concelho de Caminha e conhecendo naturalmente alguns pontos complicados de resolver devido à pandemia, pedimos-lhe uma opinião sobre o futuro imediato da Rua Direita, com uma série de bares e uma discoteca, de modo a evitar contágios e problemas de saúde.

"Ficar fechado dentro de um bar com muitas pessoas, acho que não vai ser possível e se se isso acontecer, acho que se vão correr riscos". Aponta a possibilidade de funcionarem apenas na rua, mas duvida que utilizem máscaras, o que a leva a não encontrar uma solução, classificando "muito complicado" encontrar uma resposta eficaz para este local de ócio.

A eventualidade de surgir um novo surto no Outono/Inverno domina um dos debates mais intensos no decorrer desta praga que assola o mundo, o qual não deixou indiferente, naturalmente, os profissionais de saúde em França.

"Ainda hoje falei sobre isso com o chefe do meu serviço, mas é muito incerto" porque é impossível prever o comportamento do vírus que se encontra "hoje menos virulento", por exemplo. "Será que o nosso país estará mais protegido nessa altura por ter sido atingido fortemente em Março/Abril? Nada se sabe." Ao mesmo que tempo, na Malásia ou no Brasil e outros países, o pico está a ser atingido agora, por exemplo. No meio de tanta imprevisibilidade, Daniela Pires Roteia crê que uma segunda vaga é possível. Mas certezas não há.

O posicionamento do Brasil e outros países perante a pandemia, desvalorizando a sua gravidade ou apostando noutras formas de a minorar (a tão falada imunidade de grupo), levou-a a perceber esta via, por forma a ter o maior número de pessoas imunizadas para melhor combater a doença. Mas, por outro lado, põe em risco outras pessoas com patologias associadas, "por isso", adiantou, "não sei se o benefício/risco foi o melhor", como sucedeu em Inglaterra e Suécia que têm tantos mortos, além de nem sequer terem conseguido possuir 10% da população imunizada, quando pretendiam atingir os 70%.

Considerou ainda incompreensível a posição dos países que desvalorizaram completamente o vírus num fase inicial, em contraste de outros como a Alemanha ou Coreia que procederam à realização de testes desde o início, "porque os tinham disponíveis e puderam fazê-los e proteger dessa forma melhor a população" e, desse geito "isolar as pessoas infectadas para evitar a contaminação".

No que parece haver unanimidade de opinião é na origem do vírus.

Daniela Rotéia concorda que os mercados de animais - muitos deles selvagens e vendidos de uma forma ilegal - em contacto com produtos alimentares, na China, nomeadamente em Wuhan, estiveram na base da pandemia.

Já quanto ao timing do aparecimento do Coronavírus que desencadeou este surto pandémico, esta enfermeira refere que já existem indícios fortes de que a seu aparição remonta ao mês de Agosto, quando "já surgiram alguns casos e que foram um bocadinho abafados para não alarmar", o que foi pior, reconhece.

As pessoas aspiram cada vez mais com ansiedade pela descoberta de uma vacina que ponha cobro a este estado de alerta permanente. Contudo, esta enfermeira natural de Dem não conta com ela tão cedo. Entre um a dois anos será o período de tempo expectável, "porque ainda não se conhece muito bem a doença".

Estudo sobre a imunidade

Adiantou que o serviço onde trabalha se encontra a realizar um estudo referente à "imunidade" que os doentes curados possam contrair, quer os que apenas tiveram sintomas leves, quer os que estiveram em estado grave. Pretendem averiguar se os anti-corpos que persistirem no corpo humano produzem uma imunidade por apenas algum tempo, meses ou para toda a vida, o que "é ainda muito prematuro" confirmar, sendo necessário testar as pessoas várias vezes a fim de apurar isso.

Deu o exemplo de uma colega que ficou infectada sem ter dado conta disso, por não ter tido sintomas. O chefe de serviços dela apostou na testagem de todo o pessoal e foi então quando essa colega soube que tinha estado em contacto com o vírus, porque nem sequer se tinha apercebido disso.

Se em Portugal foi criada uma linha de informação e apoio à população, em França aproveitaram o número habitual para as emergências (15) para o mesmo efeito, o qual funciona igualmente 24 horas por dia.

"Portugal surpreendeu pela positiva"

A forma como Portugal respondeu ao combate ao Covid19 "surpreendeu-me muito pela positiva", assumiu a nossa interlocutora, que chegou a dizer ao marido : "Ai, se o vírus chega a Portugal!", porque receava que tudo fosse muito complicado, o que não se verificou, felizmente, apreciação acompanhada por muitos franceses que lhe disseram que "Portugal está a sair-se muito bem".

Considerou que "as medidas foram implementadas no momento certo", com o estabelecimento de um confinamento sem necessidade de estabelecer multas como em França, sendo respeitadas pelos portugueses.

A existência de uma única fronteira terrestre, no caso com Espanha, e de haver pouco turismo no inverno, nem estar instalada "a cultura das férias de inverno", "limitou a propagação do vírus, ao contrário do que sucedeu noutros países do centro da Europa em que é prática corrente desfrutarem da neve nos Alpes".

"É muito duro"

Se a ausência do país e dos familiares já é difícil de suportar em épocas normais, em situações como esta "é muito duro", reconheceu Daniela Roteia, "não só por não podermos estar presentes do ponto de vista físico, mas também psicologicamente".

Explicou que "íamos com regularidade a Portugal, todos os três, quatro meses, e agora, sem saber quando poderemos voltar, é difícil de gerir". A par de através dos contactos regulares com a família, esta lhes dizer que está tudo bem, mas, "ficamos sempre com a pulga atrás da orelha" designadamente para quem lida diariamente com a saúde, como é o caso deste casal. "No meu caso", adianta, "como sou filha única e nunca estive separada dos meus pais, isto custa muito", apesar de ter a facilidade de comunicar diariamente com eles, em contraste "com o tempo do meu avô, como dizia a minha mãe, em que ele escrevia uma carta a dizer que "estou doente", mas com o tempo de ela chegar a Portugal e a responder, já estava bom".

"Espero muito ir a Portugal este Verão"

"Espero mesmo muito ir a Portugal este Verão", desabafa esta deense nascida das faldas da Serra d'Arga, e "sem necessidade de fazer quarentena" quando regressarem a França.

A sua vida familiar em Orléans não se alterou muito com as medidas de contenção exigidas à população, porque era casa-trabalho-casa. O seu filho mais velho com dois anos e meio, notou que algo se passava de diferente, mas como a rotina dos pais se manteve praticamente igual e possuem um jardim onde a criança podia passear, acabou por passar bem. O filho mais novo, com poucos meses, nem sequer se apercebeu da situação. Ambos frequentam a creche do Centro Hospitalar e acompanham os pais diariamente.

A terminar, deixou um conselho para todos os deenses e caminhenses, para que "se protejam na mesma porque o vírus ainda está aqui, esperando ver-vos em breve".


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Do Coura se fez luz. Hidroeletricidade, iluminação pública e política no Alto Minho (1906-1960)"
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