Jornal Digital Regional
Nº 493: 5/11 Jun 10
(Semanal - Sábados)






Email Assinaturas Ficha Técnica Publicidade 1ª Pág.
Cultura Desporto Freguesias Óbitos Política Pescas Roteiro

CIDADANIA

O mundo em geral e Portugal em particular atravessam uma crise que, para alguns teóricos dos sectores: económico e financeiro, é muito grave e comparável a outras situações ocorridas há várias décadas, concretamente à de 1929-30. Grandes empresas industriais, comerciais, da banca e dos serviços, confrontam-se com a possibilidade de fortes retracções dos mercados, diminuição do poder de compra dos cidadãos, falta de liquidez, respectivamente e ainda o desemprego.

Por sua vez, os Estados, representados pelos seus Governos, democráticos ou ditatoriais, têm dificuldades em encontrar e implementar soluções que, pelo menos, atenuem a crise, em primeiro lugar para os mais necessitados, fracos e desprotegidos. Assiste-se à tentativa de descobrir soluções e implementar medidas que visem "salvar" determinadas instituições, que por diversas razões não teriam acautelado eventuais crises, sempre possíveis de ocorrerem, conforme a história económico-financeira tem demonstrado ao longo do tempo. O mundo, na sua globalização desenfreada, atingiu o desnorte que, infelizmente, castiga aqueles que não contribuíram para esta falta de rumo.

Ao longo dos últimos anos, diversas instituições (aqui consideradas como autênticas empresas, independentemente de sector em que actuam: comércio, indústria, banca, seguros, serviços e muitas outras), "orgulhavam-se" quando divulgavam os seus resultados líquidos, por cada semestre, sempre na ordem das centenas de milhões de euros. Possivelmente, os seus gestores, adjuntos, assessores e toda uma equipa de administração, auferiam (e quem sabe se continuam a auferir) vencimentos, prémios, benefícios, regalias, privilégios, indemnizações e reformas, que muitos poucos portugueses jamais conseguirão em toda as suas vidas, ainda que trabalhem e descontem cem anos.

No lote dos privilegiados, certamente que talvez se inclua uma determinada elite da sociedade portuguesa: eventualmente da área política; possivelmente do denominado alto funcionalismo da Administração Pública; provavelmente no âmbito de determinadas actividades-profissões sob a responsabilidade do próprio Estado/Governo, banqueiros e empresários, entre outros.

É bem possível que certos vencimentos e reformas, talvez a partir dos dois mil euros mensais, por muito justos, legítimos e legais que sejam, já comecem a constituir uma ofensa para os mais de quatro ou cinco milhões de portugueses que auferem salários de pouco mais de quatrocentos euros e reformas de duzentos e cinquenta euros mensais, isto para não se abordar a situação dos cerca de 600 mil desempregados (2010) e dos cerca de um milhão e oitocentos mil cidadãos que se encontram a passar fome, que já não conseguem adquirir a medicação necessária ao sofrimento físico e, portanto, o respeito pela dignidade da pessoa humana já não é um valor a ter em conta. O século XXI não poderia começar da pior maneira.

A disparidade de vencimentos, bonificações, regalias, privilégios e reformas em Portugal, a confirmarem-se, são inadmissíveis, num país de brandos costumes, cuja Constituição da República, teria sido, alegadamente, ao tempo, considerada uma das mais avançadas do mundo, precisamente pela sua brandura, pelo seu humanismo. A Cidadania também se aplica, cada vez com mais propriedade, a estas situações, ou será que há cidadãos de elite, de primeira, segunda e terceira categorias?

A Cidadania também é solidariedade, colectivismo, distribuição justa da riqueza produzida por todos, de um erário público construído pelo esforço de todos os cidadãos, que pertence a todos, em proporções justas, em função da participação e das necessidades de cada um, contemplando, porém, aqueles que sempre cumpriram com os seus deveres, sem prejuízo do mérito, do investimento e do risco que outros correram e responsabilizando aqueles que de alguma forma contribuíram para a crise que se instalou e que tanto tem feito "apertar o cinto" aos mais pobres.

Cidadania não é o que está a acontecer em Portugal. A Cidadania comporta outros valores como a solidariedade, a justiça social, a participação, o civismo, o patriotismo, a coragem, entre muitos outros. Neste período difícil da vida das pessoas, a Cidadania deveria partir daqueles a quem nada falta e, provavelmente, haveria razões suficientes para se acompanhar o pensamento de RESENDE, (2000: 200), segundo o qual: "Talvez pela razão mesma de existir tanta coerência, tanto respeito a leis e à dignidade humana, a ênfase dada na pregação da cidadania até agora tenha sido mais de reivindicação de direitos do que exercer deveres de cidadão. Tem-se estimulado mais uma postura individualista de cobrança e protesto e menos uma atitude de participação, que pode ser individual, grupal ou colectiva, com objectivos de autodesenvolvimento social, e como autodirecção no encaminhamento e solução dos problemas comunitários, regionais e nacionais. Chegando-se a este estágio, não será mais necessário reclamar mínimos e fundamentais direitos."

A grande interrogação que começa a desenhar-se é sobre o estado da Cidadania: estará ela também em crise? Quando valores fundamentais da construção democrática como a liberdade, a igualdade e a fraternidade parecem estar esquecidos e/ou preconceituosamente ignorados; quando a insensibilidade para acudir aos mais fracos, desprotegidos e marginalizados, se afigura uma realidade permanente; quando nos últimos vinte anos a fixação de vencimentos, os aumentos salariais, benefícios e privilégios contemplam muito mais os que já ganhavam muito e prejudicam os que cada vez ganham menos (cf. Estudo da OIT - Organização Internacional do Trabalho, divulgado no noticiário da Antena-1, de 18.10.2008, às 14H00); quando certas classes elitistas se preocupam apenas com o seu bem-estar, para além do que é razoável, a verdade é que o mundo e os valores da Cidadania democrática estão moribundos.

No estudo, a OIT - Organização Internacional do Trabalho, refere-se que Portugal já está incluído no grupo de países desenvolvidos e que num conjunto de setenta países, é um dos que, a par da Hungria, Polónia, Estados Unidos da América e alguns do Norte da Europa, as desigualdades sociais mais se agravaram, e que aqueles que nos anos noventa recebiam bem, hoje recebem ainda mais e quem já recebia pouco, hoje tem um salário ainda menor, considerando já os magros aumentos que tiveram, quando os tiveram, concluindo-se pela "fraca capacidade das políticas internas". Os milhões de euros que, alegadamente, entram no país, com uma periodicidade quase diária, são insuficientes para encurtar o fosso que separa os muito ricos dos muito pobres.

A Cidadania e os seus valores estão, também, em crise há muito tempo, pelo menos desde há cerca de vinte anos, pouco menos daqueles que levou Portugal à adesão à União Europeia em 1986. Estar-se-á a caminhar para a globalização da Cidadania pela via mais negativa, porque desumana, injusta e violadora dos mais elementares valores que caracterizam a pessoa humana? Há 32 anos, na tomada de posse do I Governo Constitucional, já o então senhor Primeiro Ministro, (1977: 70) afirmava: "Não podemos também adiar por mais tempo a correcção de gritantes injustiças sociais que têm resistido a todas as investidas da demagogia pseudo-revolucionária. Tem de se procurar corrigir as disparidades do leque salarial e olhar a sério para outras categorias de portugueses que são os eternos sacrificados: o conjunto da população rural, os pescadores, os mineiros, certas categorias de funcionários públicos e da administração local, os reformados."

O balanço de mais de três décadas de Cidadania poderá ser feito sob duas perspectivas: os que têm beneficiado do regime democrático; os penalizados por esse mesmo regime. A conclusão parece óbvia. Que os mais directos intervenientes a entendam, rectifiquem e assumam as suas responsabilidades, fazendo justiça, rapidamente, aos que dela mais precisam e merecem. Isto será o mínimo que, neste período de forte aperto se pode e deve fazer, sem hesitações e com a coragem que dignifica as pessoas e as instituições.

Bibliografia
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). "Direitos Humanos e Justiça" site www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 - link Tribuna", N. 404 Semana de 06/12 Set. 2008.
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). "Educação para uma Cultura da Cidadania Plena" site www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 - link Tribuna", N. 391 Semana de 24/30 Mai.2008
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). "Ética da Responsabilidade Política" site www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 - link Tribuna", N. 385 Semana de 12/18 Abr.2008
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). "Ética Solidária entre Pessoas-Humanas de Boa-Vontade", site www.caminha2000.com in "Jornal Digital
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). "Luta contra a Miséria: a fome", site www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 - link Tribuna", N. 400 Semana de 26/Jul. a 01/Ago. 2008.
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). "Sensibilidade Política para as Questões Sociais", site www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 - link Tribuna", N. 390 Semana de 17/23 Mai. 2008
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2008). Educação para a Cidadania Luso-Brasileira: Um Projecto de Formação ao Longo da Vida. Tese de Doutoramento, em fase final para apreciação por uma Universidade Portuguesa ou Brasileira. (Não publicada)
DELLA TORRE, (1983). O Homem e a Sociedade. Uma Introdução à Sociologia. 11ª Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional
DIMOCK, Marshall E., (1967). Filosofia da Administração. Trad. Diógenes Machado e Arnaldo Carneiro da Rocha Netto. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura - Brasil-Portugal
GALACHE - GINER - ARANZADI, (1969). Uma Escola Social. 17ª Edição. São Paulo: Edições Loyola
MOITINHO, Álvaro Porto, (1965). Introdução à Administração. São Paulo: Editora Atlas, S.A.
RESENDE, Enio, (2000). O Livro das Competências. Desenvolvimento das Competências: A melhor Auto-Ajuda para Pessoas, Organizações e Sociedade. Rio de Janeiro: Qualitymark
SARTORI, Luís Maria, (1990). Quando a Empresa se Torna Comunitária. Aparecida SP: Editora Santuário
VASCO, Nuno, (Coord.). (1977). Vencer a Crise, preparar o futuro. Um ano de governo constitucional. Lisboa: Secretaria de Estado da Comunicação Social - Direcção-Geral da Divulgação

Venade - Caminha - Portugal, 2009
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
bartolo.profuniv@mail.pt
4910-354 Venade - Caminha - Portugal
Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea
Universidades: Minho/Portugal; Unicamp/Brasil
Professor-Formador
bartolo.profuniv@mail.pt