Elisabete Ramos nasceu há 48 anos em Quibala, Angola, mas veio viver com os pais para Vilar de Mouros aos 12 anos, aldeia a que regressa aos fins-de-semana, sempre que tem oportunidade.
Completou o 12º ano na área das Ciências na Escola Preparatória e Secundária de Caminha, após o que ingressou na Faculdade de Ciências da Nutrição da cidade do Porto, onde se licenciou em 1997.
Fez mestrado em saúde pública com especialização em epidemiologia e doutorou-se (2006) igualmente na mesma área na Faculdade de Medicina do Porto, onde é docente desde 2007.
Realiza ainda trabalho de investigação nessa faculdade tendo como base o estudo das populações para tentar compreender o que é que faz com que as pessoas fiquem doentes ou não, daí a ligação à epidemiologia, um tema mais que actual (pelas piores razões) nos dias de hoje, mas ao qual não nos podemos furtar.
Desde 16 de Setembro que preside à referida associação representativa dos epidemiologistas, cargo que assumirá nos próximos três anos, tendo-se tornado a primeira mulher nessa função.
Tal facto, levou-nos a solicitar-lhe uma entrevista:
P: Dentro da área da epidemiologia, escolheu alguma vertente em particular?
R: Sim, essencialmente na área da obesidade, a qual mais trabalhei até à chegada desta onda da pandemia, averiguando porque é que se fica obeso, e, por outro lado, quais as suas consequências.
Como surge a presidir à Associação Portuguesa de Epidemiologia?
Na verdade, eu já estou ligada à associação há alguns anos e já exercia o cargo de vice-presidente no mandato anterior, sendo um percurso de vários anos e não repentino, e nas últimas eleições candidatei-me e ganhei.
Onde fica a sede da APE?
Na realidade, oficialmente, é em Lisboa, na Escola Nacional de Saúde Pública, mas presentemente, grande parte do trabalho está concentrado no Porto por estar mais próximo desta direcção.
Nos tempos actuais, com uma pandemia forte em todo o mundo, qual o papel desta associação?
Somos uma associação científica e o seu papel, essencialmente, é providenciar informação para os seus associados, além de proporcionar formação sempre que necessário, recolha de informação publicada para que estejam mais atentos aos acontecimentos em cada momento, e que é particularmente importante neste momento, porque não estávamos habituados a lidar com doenças novas.
É o caso de uma coisa que só conhecemos há nove ou dez meses e a velocidade das informações novas é muito grande, daí a necessidade de distinguir o que é informação de qualidade ou de menos qualidade e que também é fundamental.
Além de, sempre que nos é pedido, temos dado algum parecer ou suporte a uma câmara, ou um sindicato, por exemplo, que nos pede opinião sobre uma decisão a tomar em relação aos seus associados.
Perante a catadupa de informações diárias que se abatem sobre a cabeça das pessoas - não só aqui, como em todo o mundo -, vocês podem contribuir para esclarecer as inúmeras dúvidas?
Sim, embora a nossa relação não tenha sido directamente com as pessoas, mas com os associados que se encontram mais perto da população e com quem possam falar, porque temos médicos de saúde pública, de medicina geral, matemáticos, pessoas, portanto, de várias formações em contacto mais próximo com as pessoas.
Mas, na realidade, esta tem sido uma tarefa muito difícil, mesmo para os profissionais, face à publicação de muita informação que, por vezes, até parece contraditória, sendo preciso ler nas entrelinhas e perceber uma coisa que nem sempre tem sido muito clarificada, e, às vezes, a mensagem que parece contraditória não o é quanto isso.
O problema é que estamos perante uma doença que evolui muito rapidamente. E, por exemplo, a mensagem que temos de dizer quando anunciamos que temos 400 casos por dia, é oposta da mensagem que temos de dizer quando temos 4.000 casos por dia.
Parece que se está a contrariar, mas o que acontece é que o cenário mudou, e isso não tem ficado muito clara para as pessoas que essa mudança de discurso, às vezes, não reflete uma mudança de discuso per si, por isso não é que nuns dias se diz uma coisa e noutros se diz outra, é que para cada momento as opções necessárias são diferentes. E isso não é uma mensagem que tenha ficado muito claro na população, e há muitas dúvidas. Eu acho que nesse sentido, quem escreve para a população pode ter um papel importantíssimo a clarificá-las.
Referiu-nos a sua aposta inicial no estudo das pessoas com obesidade, no âmbito da saúde pública. Agora, com o Covid, dizem-nos que as pessoas com esse problema, são um factor de risco acrescido. É assim?
O que não é muito claro neste momento, é se a obesidade é um factor de risco para ter esta doença, isto é, se tem mais risco de ficar infectado.
Mas o que é muito claro, é que uma pessoa obesa que fique infectada tem um prognóstico muito mais difícil. Primeiro pelo espaço, porque a gordura ocupa espaço e o pulmão em si já está fisicamente mais comprimido do que no caso daquele que não é obeso.
A par de as pessoas com obesidade já terem outras patologias (diabetes, hipertensão), as quais, juntamente com a infecção também não são favoráveis, e, também porque esta doença tem uma componente muito inflamatória, característica da própria obesidade porque existem níveis mais altos de inflamação.
Este conjunto de factores cria uma "tempestade" pouco simpática.
Ao longo da história da humanidade, sempre houve diversas pandemias, sendo o último exemplo a pneumónica, entre 1917/18, há já um século. Como é possível que desde esse momento até agora, cem anos depois, apesar do avanço da ciência, parece que esta tem andado às aranhas com este vírus, levando as pessoas a estranharem que não tenha sido possível debelar a doença num período de tempo curto. Há alguma explicação?
"Já não estávamos habituados a doenças infecciosas"
Na verdade, até se conseguiu muita coisa em muito pouco tempo, porque ainda nem sequer passou um ano e já sabemos muita coisa da doença. Nunca houve nenhuma circunstância em que se tenha criado uma vacina em tão pouco tempo como aconteceu desta vez. Nesse sentido, apesar de tudo, a ciência respondeu bem e rapidamente.
Eu acho que o maior problema é que nós já não estávamos habituados a esta questão das infecções e de nos protegermos delas. Há muitos anos que nos tínhamos habituado a tomar um antibiótico ou um medicamento qualquer e as coisas tratavam-se, e toda a nossa cultura nos deixou muito fragilizados, porque há um conjunto de actividades, de não tocar, manter o distanciamento físico, não haver grandes aglomerados, tudo coisas que vão contra os nossos hábitos.
Portanto, eu acho que foi mais isso, uma realidade que veio pôr em causa muito do que tinha sido assumido e adquirido pela nossa cultura e os nossos hábitos, e nós, enquanto sociedade, não estávamos preparados em todo para isso.
De um ponto de vista da ciência, eu diria que provavelmente a primeira compreensão da gravidade da situação não foi completamente reconhecida no princípio. Em Fevereiro, estávamos convencidíssimos que era muito pouco provável que iríamos ter uma extensão com uma magnitude que viria a ter num curtíssimo espaço de tempo e só depois é que se começaram a tomar medidas
Insisto que até acho que a resposta foi relativamente rápida, tendo em conta que foi algo completamente novo.
Acha que será um dia possível saber a razão do aparecimento desta pandemia, ou é muito igual a outras que houve no passado?
Eu diria que é possível que com a melhoria das técnicas para identificar o vírus se possa entender o seu aparecimento. Mas acho muito pouco provável que o início preciso seja completamente clarificado, porque da informação que está disponível até agora, nenhuma das três ou quatro opções mais consistentes permite confirmar ou desmentir com certeza qualquer delas.
P: Há algo de semelhante com os vírus do passado?
É muito diferente, quando comparamos, por exemplo, com o vírus da gripe e que foi a última grande pandemia. Ele é mais próximo de outros surtos que aconteceram mais recentemente, só que não atingiram esta magnitude que nunca imaginamos porque estiveram mais confinados na zona do oriente.
Agora, este, infelizmente, reúne duas características que o tornam muito difícil de combater. Uma, é o facto dele não ser muito agressivo, o que para nós é bom porque a maior parte das pessoas sobrevive, mas, isso é também uma grande vantagem para o vírus. Porque um vírus que seja muito letal, que mate muito, como acontece por exemplo com o ébola, dificilmente é um vírus que se consegue expandir tanto, porque elimina os seus hospedeiros, equivalendo a que se elimina a ele próprio, ao passo que este tem esta desvantagem para nós, porque como é muito ligeiro, sobrevive.
Outro facto que é terrível para nós, é o de se transmitir quando ainda não há sintomas, porque nós protegemo-nos muito bem de alguém que já tem sinais de doença, mas com as pessoas com quem convivemos diariamente, enquanto não têm sintomas da doença, não nos protegemos delas, o que é uma vantagem para o vírus.
Distanciamento, higienização e uso das máscaras serão suficientes para evitar o vírus?
Distanciamento físico (a melhor estratégia), lavagem das mãos, etiquetas respiratórias e não ir trabalhar quando estamos doentes - o que não é muito comum entre nós - são barreiras para nos protegermos, bem como aos outros. Ainda por cima no Inverno, quando nos constipamos e os sintomas são muito iguais ao do vírus, ficamos sempre naquela dúvida.
Há uma diferença no uso da máscara entre os povos do oriente e nós. Eles utilizam-na para proteger os outros e nós para nos protegermos, e isso acaba por ter algumas implicações em algumas circunstâncias. Isto é, os outros sentirem de que se uma pessoa está a usar máscara, é para desconfiar. Mas no Oriente a máscara existe na lógica de proteger o outro e não o contrário.
Em África, parece haver menos casos do que noutros continentes. No início, atribuía-se isso ao calor, um meio em que o vírus não se daria bem. Confirmou-se esta hipótese?
Havia alguma ideia de que isso acontecia, nomeadamente em comparação com outros vírus da mesma família. Mas mais do que o calor, a luz solar. Mas os dados até agora não parecem confirmar que isso aconteça, atendendo ao que se passa no Brasil, num continente quente, mas com uma situação muito dramática.
"É altamente provável que aconteça"
Tem alguma ideia sobre o que vai suceder no futuro? Teremos pandemias com mais frequência?
Acho que vai ser sempre futurologia.
Já havia várias pessoas a escrever que isto iria suceder mais tarde ou mais cedo e é altamente provável que volte a acontecer. Basta que se juntem as circunstâncias para que apareça um vírus como este, que se transmite facilmente e que não mata os seus hospedeiros.
E porquê? Como nós circulamos muito de um sítio para o outro, a facilidade de transportar o vírus é enorme, porque quase não há barreiras, ao contrário de andarmos a cavalo, por exemplo, porque durante a viagem o vírus morria, ou pelo menos dava tempo para que nos preparássemos.
Mas é altamente provável que surja novo vírus. Basta que se reúnam as condições para que outro vírus desta natureza apareça.
P: É provável que as alterações climáticas possam contribuir para o surgimento de mais pandemias?
Em algumas é provável, ou pelo menos em coisas que eram endémicas em determinada região, isto é, que existem regularmente em determinada região, como é o caso da malária. Sabemos que há zonas onde ela existe mas não chega a ser pandémica.
Mesmo que não sejam desta magnitude, com as alterações climáticas é muito provável que sejamos confrontados com doenças que não tínhamos até agora porque não possuíamos clima para elas se estabelecerem. Se nós continuarmos a mudar o clima, no sentido de aumentar a temperatura ou diminuir a quantidade de água, alguns vírus poderão ter condições para crescerem.
Agora não se fala noutra coisa que não sejam as vacinas. Acredita que que serão uma realidade a curto prazo?
Eu imagino que a vacina vai ser uma ferramenta fundamental, acima de tudo para proteger as pessoas que estão em maior risco e se as conseguirmos proteger, ela será muito importante para chegar a esse grupo.
Claro que isto é um desafio, pois, como lhe disse, ela foi produzida num tempo muito mais curto do que o habitual.
Todos os dados que estão a ser divulgados mostram que ela tem segurança e que podemos confiar, mas isto ainda vai demorar algum tempo, até porque a produção em larga escala ainda vai demorar um bocadinho. Por isso, ainda vamos ter aqui algum tempo para conviver com ela.
Pode prever quanto tempo mais será necessário esperar?
É difícil de prever porque vai depender muito da capacidade de produção das empresas e laboratórios que a estão a fabricar e, neste momento, ninguém sabe verdadeiramente quando chega e que quantidade chega.
Está previsto administrar as primeiras doses em Janeiro, mas não sabemos quantas e com que regularidade porque não virão todas ao mesmo tempo. E todo esse esquema vai condicionar a velocidade de vacinar e de ter a população protegida.
E a médio e longo prazo estas vacinas garantem segurança de que não originarão problemas e efeitos secundários? Parece que se quer dar uma resposta imediata sem prever o futuro.
Neste momento não podemos dizer muito.
Nenhum especialista lhe consegue dizer muito neste momento sobre a vacina, atendendo a que toda a informação foi disponibilizada para as agências que autorizam a sua utilização e ainda nada foi publicado em qualquer jornal científico ou num meio que esteja acessível.
Na verdade, não temos dados válidos que permitam dizer com certeza de que já vi um artigo ou um trabalho que mostra isto e aquilo. Sabemos é que as autoridades que estão a analisar esses dados que receberam directamente dos laboratórios, têm manifestado a informação de que não há eventos adversos graves, e os que surgiram escritos indicam que são relativamente seguros.
Se nós pensarmos num ano, ano e meio, dois anos de prazo, é impossível imaginar porque ainda não passou esse tempo. Os estudos foram feitos há muito pouco tempo e, na verdade, o seguimento destas pessoas (voluntários) é só de meia dúzia de meses, pelo que é impossível saber o que vai acontecer no futuro.
Aquelas que são feitas com estruturas semelhantes às usadas noutras vacinas, dão tranquilidade. Porque não há nada que nos faça prever que se numa base (perfil) usada noutra vacina que corria bem sem trazer complicações e que já foi usada durante muito anos, que agora não corra bem. E isso é que dá tranquilidade para dizer que nada é esperado de diferente das anteriores.
Então aconselha a vacinação…
… eu diria que nesta primeira fase em que serão criteriosamente escolhidas as pessoas em função do risco associado à doença, não é sequer de ponderar não ser vacinado.
Estamos a falar de pessoas para quem o risco de ter uma complicação grave se tiver esta doença é demasiado grande, comparativamente com o potencial risco de usar a vacina. Nessa circunstância, eu diria que sim.
Todos os outros, a generalidade da população sem nenhum risco acrescido, provavelmente só daqui a quase um ano é que teremos de decidir se queremos ser vacinados ou não, porque então o conhecimento já aumentou muito.
Insisto que ninguém correria hoje o risco de autorizar uma vacina sobre a qual não houvesse probabilidade de ser segura.
"Foi uma corrida contra o tempo"
A despeito de todo o sofrimento que a Humanidade está a padecer, no caso dos científicos envolvidos neste processo, isto, em termos de investigação, foi um desafio estimulante, não é verdade?
Sim, foi, porque mesmo cientificamente, nós tínhamos abandonado o estudo das doenças infecciosas e isto obrigou a uma aprendizagem muito grande, sendo muito desafiante.
E mesmo na forma de comunicar, esta pandemia trouxe muitos desafios, havendo, contudo, uma dicotomia entre saúde e economia, mas que não é real, porque à custa da Covid, mesmo dentro da saúde, há muitas coisas que não estão a ser resolvidas como deveriam.
Temo aqui um problema de saúde versus saúde, mas depois, por outro lado, há um aspecto também muito importante que não podemos esquecer: é que na verdade, o que mais prejudica a saúde é a pobreza.
E ter problemas com a economia - claro que vai ser a mais longo prazo e isso parece que não vai ter implicações na saúde -, mas o que mais a prejudica, são de facto as condições económicas não permitirem que o indivíduo tenha saúde.